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Pix e a geopolítica dos pagamentos: sucesso brasileiro, disputa global

Por José de Carvalho Junior, co-fundador e CEO da Muevy, fintech B2B autorizada pelo Banco Central como Iniciadora de Pagamentos (ITP), especializada em conectar Pix, Open Finance, bandeiras globais e stablecoins para automatizar cobranças e transferências internacionais

O Brasil vive um embate que coloca sua inovação financeira mais bem-sucedida sob os holofotes internacionais. O Pix, sistema de pagamentos instantâneos do Banco Central que revolucionou as transações no país, é alvo de uma investigação comercial dos Estados Unidos, que questionam se houve favorecimento indevido em relação a empresas estrangeiras do setor.

Criado em novembro de 2020, o Pix tornou-se um caso notável de sucesso em infraestrutura pública digital financeira. Com ampla adoção popular e transações gratuitas ou de baixo custo, movimentou R$ 26,4 trilhões ao longo de 2024 – 54% mais que em 2023 – e foi o instrumento de pagamento que mais cresceu em número de operações no Brasil, com alta de 52% e pouco mais de 63 bilhões de transações. Hoje, mais de 60% da população brasileira o utiliza ao menos uma vez por mês, evidenciando inclusão financeira em massa e impacto transformador dessa inovação.


Pix: infraestrutura pública de sucesso no Brasil

Desenvolvido e operado pelo Banco Central, o Pix rapidamente se consolidou como principal meio de transferência de dinheiro no país. Funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, permitindo transferências em tempo real via aplicativos bancários ou fintech.

A arquitetura pública e interoperável do Pix possibilita que qualquer pessoa com conta bancária ou digital faça pagamentos instantâneos digitando apenas uma chave (telefone, e-mail ou CPF) – uma facilidade antes inimaginável no sistema tradicional. Os resultados falam por si: bilhões de transações mensais, trilhões de reais transferidos anualmente, e uma adesão que supera metade da população brasileira.

Pequenos comerciantes, profissionais autônomos e cidadãos comuns passaram a contar com um meio de pagamento gratuito e ubiquamente acessível, reduzindo a dependência de dinheiro em espécie e de cartões. O Pix também fomentou a inclusão financeira, trazendo para o sistema bancário camadas da população antes desatendidas pelos meios de pagamento tradicionais. Não à toa, tornou-se infraestrutura crítica do país – um bem público digital que inspira estudos e interesse de outros países em replicar o modelo.


Investigação dos EUA e alegações de favorecimento

O sucesso esmagador do Pix, contudo, atraiu a atenção de Washington. Em julho de 2025, o Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR) incluiu o Pix em uma investigação sobre práticas comerciais do Brasil, alegando que o governo brasileiro poderia estar favorecendo serviços de pagamento estatais em detrimento de concorrentes estrangeiros.

No documento da investigação, o USTR afirma que “o Brasil parece favorecer seus próprios serviços de pagamento eletrônico desenvolvidos pelo governo”, citando indiretamente a forma como o Banco Central tratou o WhatsApp Pay – serviço de pagamentos da gigante norte-americana Meta (dona do WhatsApp, Facebook e Instagram).

O caso do WhatsApp Pay é central nessa alegação. Em junho de 2020, a Meta lançou no Brasil sua funcionalidade de pagamentos pelo WhatsApp, que utilizaria as redes Visa e Mastercard para processar transações. Dias após o anúncio, entretanto, o Banco Central e o CADE (autoridade antitruste brasileira) suspenderam o WhatsApp Pay, citando potenciais riscos ao Sistema de Pagamentos Brasileiro e preocupações concorrenciais.

Críticos na época acusaram o movimento de proteger o nascente Pix e os grandes bancos domésticos, já que a decisão ocorreu poucos meses antes da estreia oficial do Pix. O Banco Central negou agir para barrar concorrência, mas acabou lançando o Pix naquele mesmo ano de 2020. Com a suspensão do rival privado, o Pix pôde ser implementado sem competição equivalente e rapidamente ganhou adoção massiva, ocupando o espaço que o WhatsApp Pay poderia disputar.

A autorização para o WhatsApp Pay operar só viria em março de 2021, quando o Pix já estava amplamente difundido entre os brasileiros; mesmo após liberado, o serviço da Meta não conseguiu competir diante da consolidação do sistema público.

Para as empresas americanas de pagamentos digitais, esse episódio soou como um possível favorecimento regulatório do Pix sobre soluções estrangeiras. A investigação dos EUA buscará avaliar se medidas como essa violam acordos internacionais e poderiam justificar sanções comerciais futuras. Do lado brasileiro, a visão é bem diferente.

Autoridades e especialistas argumentam que o Pix venceu por mérito, não por protecionismo. Em vez de prática desleal, o que houve foi a chegada de uma tecnologia superior, de custo muito menor e mais acessível, capaz de conquistar naturalmente a preferência do usuário.

De fato, o Pix e o WhatsApp Pay podem ser vistos menos como concorrentes diretos e mais como soluções de naturezas distintas: o Pix, uma solução nacional em moeda local voltada às necessidades do consumidor brasileiro, e o WhatsApp Pay, um recurso de uma big tech estrangeira integrado a cartões, inicialmente, de débito.


Pix vs. Visa/Mastercard: entendendo o desconforto das gigantes

Do ponto de vista das gigantes de cartão e Big Tech, o Pix representa uma mudança de paradigma. Um sistema instantâneo, quase sem custos e com adoção massiva obviamente gera “desconforto” nas empresas que historicamente dominaram o mercado de pagamentos. Afinal, à medida que o Pix ganha novas funcionalidades – por exemplo, o futuro Pix Garantido, que permitirá pagamentos parcelados – ele passa a ocupar espaços tradicionalmente dominados pelos cartões de crédito, como compras a prazo, alertando para o risco ao modelo de negócios dessas empresas.

Não surpreende que Visa, Mastercard, American Express e outras firmas vejam no Pix um concorrente formidável: um concorrente que não visa lucros, não cobra porcentagens por venda e é respaldado pelo Estado. Além disso, Big Techs como Google (Google Pay), Apple (Apple Pay) e Meta (WhatsApp Pay) também sentem o impacto. Suas soluções de carteira digital enfrentam dificuldade de penetração num mercado em que o Pix já oferece uma experiência de pagamento móvel simples e onipresente. Ou seja, o ecossistema brasileiro adotou em massa a solução local antes que as big techs estrangeiras conseguissem se firmar. Para essas empresas, o avanço de modelos domésticos como o Pix é um alerta vermelho de que poderão “perder relevância ou até mesmo a janela de entrada” em mercados onde soluções públicas interoperáveis ganham força.

Por outro lado, o uso de cartões em transações transfronteiriças é muito utilizado e movimenta cerca de US$ 17,5 bilhões por ano em gastos de brasileiros no exterior. Além disso, com suas redes globais de pagamentos, elas oferecem soluções de remessa e pagamentos cross-border que não podem ser realizadas através de Pix. Este é um diferencial que, aos poucos, as bandeiras começam a explorar no Brasil e no mundo com soluções como Visa Direct ou Mastercard Move.


Disputa comercial e o amanhã do sistema financeiro global

A iniciativa dos EUA de investigar o Pix insere o sistema brasileiro de pagamentos no tabuleiro da geopolítica financeira global. Não é um caso isolado. Em anos recentes, Washington tem demonstrado preocupação com iniciativas semelhantes ao Pix em outros países, especialmente quando desenvolvidas por governos locais.

Em 2023, por exemplo, um sistema de pagamentos instantâneos por QR code lançado na Indonésia foi classificado pelo USTR como barreira comercial não tarifária, sob alegação de prejudicar empresas americanas – classificação que serviu de base para a proposta de uma tarifa de 32% sobre as importações da Indonésia naquele contexto.

Ou seja, há um padrão emergente: à medida que nações adotam plataformas próprias para reduzir custos e democratizar pagamentos, grupos econômicos estabelecidos (muitas vezes sediados nos EUA) tendem a enxergar ameaça aos seus interesses, acionando seus governos para reagir. No caso do Pix, o Brasil se vê no meio desse embate.

De um lado, defende sua soberania regulatória e a inovação que trouxe enormes ganhos domésticos em inclusão e eficiência. De outro, enfrenta a pressão de interesses estrangeiros poderosos – as redes de cartão, as big techs – preocupados em manter sua fatia no mercado global de pagamentos. A crítica americana de “favorecimento” estatal ignora, em parte, que o próprio mercado brasileiro clamava por uma solução mais eficiente e barata, dado que os meios tradicionais não atendiam plenamente a população.

O Pix preencheu esse vazio com sucesso. Entretanto, é inegável que o tema já extrapolou fronteiras comerciais. Com a investigação formal dos EUA, o Pix entra de vez no radar das disputas globais – tornou-se um símbolo de um modelo inovador que, ao mesmo tempo em que promove inclusão financeira, desafia o domínio tradicional de gigantes do setor.

Em última instância, a questão ultrapassa Brasil vs. EUA: trata-se do futuro dos pagamentos no mundo. Vale notar que outros países também seguem essa tendência. Índia, México e até os próprios Estados Unidos estão implantando sistemas de pagamento instantâneo domésticos – a Índia com o UPI, o México com o CoDi, os EUA com o recém-lançado FedNow pelo Federal Reserve (além do Zelle, dos bancos privados) –, sinal de que “a tendência é global”. Cada nação busca modernizar seu ecossistema financeiro, reduzindo custos e aumentando a rapidez das transações. O que o Pix representa, com sua rapidez de implementação e adoção recorde pelo público brasileiro, é uma espécie de vanguarda desse movimento mundial.

O choque entre infraestruturas financeiras nacionais e interesses corporativos globais levanta perguntas importantes. Como equilibrar a inovação local e a competição justa? Será possível harmonizar sistemas públicos como o Pix com a atuação das multinacionais de pagamentos, sem que um exclua o outro? A resposta talvez resida na cooperação e interoperabilidade internacionais.

Ao invés de encarar o Pix como ameaça, poderia-se vislumbrar uma rede futura em que diversos sistemas instantâneos – Pix, UPI, FedNow, entre outros – conversem entre si, permitindo pagamentos transfronteiriços rápidos e baratos, e ampliando as opções do consumidor além do duopólio dos cartões.

O amanhã do sistema financeiro global pode muito bem ser definido por essa diversidade de soluções. O Pix, com seu êxito estrondoso no Brasil, abriu caminho – e agora está no centro do debate global. Resta saber se esse modelo será exportado e integrado, tornando-se pilar de um sistema mais democrático, ou combatido e restringido por aqueles que têm algo a perder. A única certeza é que a discussão vai além de tarifas e investigações: ela toca no cerne de quem definirá as regras do jogo financeiro nas próximas décadas.

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