Carregando...

Tempestade em copo d’água? O real impacto do MercadoLivre nas ações e nos negócios das redes de farmácia

A queda das ações de redes farmacêuticas após anúncio de entrada do Mercado Livre na venda de medicamentos, que levanta alertas regulatórios e estratégicos, também revela como o mercado reage mais à narrativa do que ao fato

O movimento de entrada da plataforma Mercado Livre (MeLi) na venda de Medicamentos Sem Prescrição (MIPs) provocou uma reação imediata no mercado financeiro: ações de grandes redes como Raia Drogasil e Pague Menos sofreram quedas significativas. No caso da primeira, as ações, cotadas a R$ 18,85 no dia 28 de agosto, véspera do anúncio, chegaram a cair para R$ 17,03, mínima alcançada em 09 de setembro.

No caso da Pague Menos, a cotação saiu de R$ 3,76 no dia 28 de agosto até a mínima de R$ 3.54 no dia 3 de setembro, até se recuperar e bater R$ 3,98 no dia 11 de setembro, mesmo curva ascendente feita pela RD, que retornou ontem, 16 de setembro, ao seu valor no início do rali, exatos R$ 18,85. O movimento, aparentemente desproporcional, levanta uma questão central: o que realmente determina o preço de uma açãofundamentos econômicos ou sentimento do mercado?

Segundo Adriana Melo, especialista em finanças e planejamento estratégico com passagens por Fiat, Votorantim e SAS, “no curto prazo, os preços são movidos por emoções e sentimento do mercado. Já os fundamentos — como lucro, receita e condições macroeconômicas — ditam o valor de uma empresa no longo prazo.” A queda das ações, portanto, pode ter sido menos sobre o impacto real da operação e mais sobre a percepção de risco e disrupção.

Para diferenciar uma queda provocada por ruído de mercado de uma mudança estrutural, Adriana Melo recomenda observar os fatos concretos. “Mudanças estruturais vêm acompanhadas de piora nos resultados, perda de vantagem competitiva ou alterações regulatórias. Já quedas por ruído são reações a notícias de curto prazo, sem impacto real nos fundamentos”.


Entre fatos e percepções, o mercado continua sendo uma arena de narrativas

A entrada do MeLi na venda de MIPs e a reação imediata do mercado — com quedas expressivas nas ações de redes como Raia Drogasil e Pague Menos — ilustram com precisão a tensão entre fundamentos econômicos e sentimento de mercado. 

A queda das ações, portanto, pode ter refletido menos o impacto real da operação e mais a percepção de risco e disrupção que ela representa. Para investidores e analistas, o desafio é separar o ruído da mudança estrutural. E em um ambiente cada vez mais sensível a narrativas, tweets e manchetes, entender o que está por trás dos movimentos de preço é mais do que uma habilidade técnica — é uma necessidade estratégica. 

O caso do MeLi na farmácia mostra que, muitas vezes, o mercado não reage ao que aconteceu, mas ao que acredita que pode acontecer. E nesse espaço entre fato e expectativa, mora a volatilidade. Para quem investe, empreende ou regula, o recado é claro: fundamentos ainda mandam, mas ignorar o poder da percepção é perder metade do jogo.


Especialista analisam sobre a entrada do MeLi na venda de MIPs

Apesar de poucos sinais apontados estruturalmente, há quem interprete a entrada do Mercado Livre na venda de medicamentos isentos de prescrição (MIPs) como o início de uma transformação profunda no varejo farmacêutico. 

Isso é, por exemplo, o que aponta o advogado Lucas Ruiz Balconi, autor do artigo “Mercado Livre na farmácia: um Cavalo de Troia?”, publicado hoje na Gazeta Mercantil. Para ele, o mercado viu “a digitalização de um dos setores mais regulados do país — com implicações para a concorrência, a regulação sanitária e a privacidade de dados”.


O precedente mexicano e o alerta regulatório

A operação no Brasil segue um roteiro já executado pelo Mercado Livre no México, onde a empresa criou uma robusta seção de saúde e medicamentos, com entrega no mesmo dia e parcerias com grandes redes. No Brasil, porém, a RDC 44/2009 da ANVISA exige que a venda de medicamentos pela internet seja feita por farmácias físicas, com farmacêutico presente. A recente compra de uma farmácia física em São Paulo pelo Mercado Livre, que precedeu o anúncio da venda dos MIPs, pode ter sido uma estratégia para contornar essa barreira.

Fachada da farmácia CuidamosFarma Ltda, que usa como nome de fantasia “Target”, fundada em 2020 no bairro do Jabaquara, em São Paulo, e adquirida pelo MercadoLivre

Mais preocupante, segundo Balconi, é a conexão com a Memed — plataforma de prescrição digital que processa milhões de receitas. A potencial integração entre os dados de consumo do Mercado Livre e os dados de saúde da Memed levanta questões sérias sobre a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). “A conveniência de receber um medicamento em casa pode vir acompanhada da cessão implícita de informações sensíveis”, alerta o especialista.


Lucas Ruiz Balconi, advogado e Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela USP: “A transformação digital do varejo farmacêutico é inevitável”.

Concorrência, alavancagem e cautela de mercado

No campo concorrencial, o CADE aprovou a operação da compra da farmácia pelo MeLi sem restrições, alegando ausência de sobreposição horizontal. Mas Balconi questiona a análise: “O risco não está no presente, mas no poder de alavancagem futuro. O Mercado Livre poderá favorecer sua própria operação farmacêutica em detrimento de outras redes que são suas clientes.”

Já o economista Igor Lucena, CEO da Amero Consulting, vê com mais cautela o impacto imediato da operação. “Acho que é uma reação exagerada. O mercado, quando vê uma queda dessas ações, prevê mais concorrência e, portanto, menos retorno. Mas isso pressupõe que o Mercado Livre vai conseguir performar em um setor em que ainda não atua”, afirma Lucena.

Segundo ele, o modelo de farmácia no Brasil é difícil de ser replicado pelo e-commerce. “Grande parte da receita vem de produtos cosméticos, alimentícios e de conveniência, comprados presencialmente. A experiência mostra que o consumidor normalmente sai do hospital e compra o remédio imediatamente. É uma necessidade imediata que o Mercado Livre dificilmente conseguirá atender”.

Lucena também destaca os desafios regulatórios e logísticos: “Será muito difícil para o Mercado Livre lidar com medicamentos de receita controlada. Mesmo nos Estados Unidos, onde a Amazon entrou recentemente, a experiência ainda enfrenta obstáculos. No Brasil, os desafios são ainda maiores.”


Um mercado pulverizado e regionalizado

Outro ponto levantado por Lucena é a estrutura do mercado farmacêutico brasileiro. “Mais de 60% do mercado ainda é formado por pequenas e médias farmácias. As grandes redes não concentram a maior parte das vendas. Isso reforça que o Mercado Livre terá dificuldade para ganhar relevância em um mercado tão pulverizado, em um país de dimensões continentais”.

Já sobre uma possível guerra de preços, o economista pondera: “Talvez o Mercado Livre tente pressionar fabricantes para conseguir descontos exclusivos. Mas o setor é extremamente dinâmico, com categorias e margens muito distintas”.

Igor Lucena, CEO da Amero Consulting: “Será muito difícil para o Mercado Livre lidar com medicamentos de receita controlada”.

Disrupção ou exagero?

Como se vê, a entrada do MeLi no setor farmacêutico pode ser considerada emblemática como exemplo da nova economia digital: legalmente sofisticada, estrategicamente agressiva e eticamente complexa. Mas, como conclui Lucena, “é preciso cautela. Ainda não dá para dizer se essa movimentação será, de fato, uma grande ameaça às farmácias tradicionais.”

Para explorar mais ainda o assunto, a GZM entrevistou Adriana Melo, especialista em finanças e planejamento estratégico. Confira: 


GZM: A queda nas ações de redes como Raia Drogasil após o anúncio do Mercado Livre indica uma ameaça real ao modelo tradicional ou é uma reação exagerada?

 Adriana Melo: A queda reflete reação técnica e de sentimento, semelhante ao que ocorre quando a Amazon anuncia expansão de serviços de saúde nos EUA e CVS ou Walgreens sofrem na Bolsa. Parte é medo de disrupção, não evidência concreta. 

O modelo físico ainda domina pela capilaridade e regulação, mas o investidor atento pode se antecipar acompanhando indicadores de penetração do e-commerce de medicamentos, parcerias estratégicas do Mercado Livre e evolução logística (tempo de entrega e capilaridade). 

Se as redes mantiverem crescimento de mesmas lojas e margens estáveis, o movimento pode ser oportunidade de compra; se perderem participação ou margens começarem a ceder, o sinal é de disrupção real e de reprecificação setorial.


GZM: Quais são os riscos e limites regulatórios que podem restringir a atuação do Mercado Livre no setor farmacêutico?

Adriana Melo: No Brasil, Anvisa impõe regras ainda mais rigorosas, restringindo vendas online a medicamentos isentos de prescrição e exigindo farmacêutico responsável. Isso limita escala e margens no curto prazo. 

O risco regulatório pode conter o avanço do Mercado Livre ou encarecer operação. Investidores devem monitorar movimentações regulatórias e possíveis pressões de associações de farmácias, que historicamente influenciam ajustes de regras no setor.


GZM: Como o histórico de confiança e experiência presencial das farmácias pode proteger seu valor de mercado frente à entrada de players digitais?

Adriana Melo: CVS e Walgreens nos EUA têm usado clínicas e programas de saúde integrados para manter fidelidade frente ao avanço do e-commerce. No Brasil, farmácias têm papel social forte com atendimento presencial, aplicação de vacinas, programas de descontos, assim criando barreiras para migração total ao digital. 

Esse relacionamento direto gera recorrência e previsibilidade de receita, algo que Amazon e Mercado Livre ainda precisam conquistar. Se indicadores de frequência e market share permanecerem saudáveis, o mercado pode reprecificar o risco percebido.


GZM: Existe risco concreto de guerra de preços no setor? Quais seriam os impactos disso sobre as margens das redes tradicionais?

Adriana Melo: No Brasil, o risco é real se o Mercado Livre adotar estratégia agressiva de preços, principalmente em parceria com farmacêuticas que trabalhem genéricos e com grande capilaridade de distribuição. 

Essa combinação pode acelerar o ganho de market share, forçando redes como Raia Drogasil e Pague Menos a rever estratégias comerciais, negociar descontos maiores com fornecedores e ampliar promoções. 

Isso pressiona EBITDA e margens de curto prazo, exigindo ganhos de eficiência operacional e fidelização via serviços (vacinação, programas de benefícios). Investidores devem acompanhar indicadores como gross margin, frequência de promoções e evolução da participação online. 

Se o setor se consolidar ou repassar custos, margens tendem a se recuperar; se não, o retorno sobre capital pode cair de forma estrutural.


GZM: Que indicadores os investidores devem acompanhar nos próximos trimestres para avaliar se o entusiasmo com o Mercado Livre se traduzirá em resultados operacionais?

Adriana Melo: Quer saber se a festa vai continuar? Olhe para o GMV – o total de tudo que foi vendido no Mercado Livre no trimestre. Se esse número vem bombando, o mercado vibra e o papel dispara. Mas não se iluda: veja se o lucro acompanha. Outro indicador importante é o CAC (quanto custa trazer cada cliente) nem sempre é divulgado, mas dá para sentir pelas despesas de marketing e pelo que falam nas conferências. 

Se a empresa gasta cada vez mais para vender o mesmo, sinal amarelo. Do lado das farmácias físicas, fique de olho em vendas nas mesmas lojas e no caixa gerado – se elas segurarem bem, a narrativa de “fim das farmácias” pode ser só pânico. Use esses números para separar hype de mudança real e decidir se é hora de surfar ou esperar o mar se acalmar.

Compartilhe nas redes:

Boletim por E-mail

GZM NEWS

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos e promoções.

publicidade

Recentes da GZM

Mais sessões