Enquanto grande parte do Ocidente ainda discute se o futuro dos transportes será mesmo elétrico, a China já vive esse futuro há pelo menos uma década. O que muitos analistas tratam como projeção ou cenário para 2030 já é, na prática, o cotidiano de milhões de pessoas em cidades chinesas que circulam em motos, carros, ônibus e frotas inteiras movidos a bateria.
Por trás disso não há apenas uma política industrial agressiva, mas um processo que começou de forma silenciosa, literalmente, com as primeiras scooters elétricas populares. Hoje, esse movimento se converteu em domínio global em escala, tecnologia e capacidade de exportação.
Escala que nenhum outro país consegue acompanhar
Os números recentes ajudam a entender a dimensão do fenômeno. Em outubro de 2025, a China vendeu mais de 1,7 milhão de veículos de “energia nova”, categoria que inclui carros puramente elétricos e híbridos do tipo plug-in. Desse total, cerca de 1,1 milhão foram veículos 100 por centos elétricos.
Sozinha, a China vende em um único mês o que muitos mercados desenvolvidos não conseguem somar em vários meses ou até anos. No mesmo período, o país exportou mais de 256 mil veículos elétricos e híbridos, praticamente o dobro do registrado no ano anterior.
Em 2024, a China já havia ultrapassado a Alemanha e se consolidado como o maior exportador de automóveis do mundo, com cerca de 5 milhões de veículos embarcados, aproximadamente 40 por cento deles totalmente elétricos. Estimativas de mercado mostram que, em outubro de 2024, a participação chinesa no mercado global de veículos elétricos girava em torno de 76 por cento, o que significa que a cada quatro carros elétricos vendidos no planeta, um é de origem chinesa.
Não se trata apenas de ganhar participação. Trata se de definir o padrão.
Tudo começou com a motinha elétrica
A história da mobilidade elétrica na China não começa pelo carro, mas pela moto. Muito antes de o mundo associar o país a marcas de veículos elétricos, as ruas de cidades de médio porte já eram tomadas por scooters silenciosas, sem fumaça e sem o ruído característico das motos a combustão.
Ainda em 2010, já era possível observar cidades inteiras praticamente dominadas por motos elétricas usadas por trabalhadores, estudantes, entregadores e famílias. Enquanto em muitas metrópoles ocidentais ainda se discutia a viabilidade de veículos elétricos, a China já tinha milhões de pequenos veículos circulando diariamente, num grande laboratório a céu aberto.
Essa fase inicial foi decisiva por três motivos:
- Criou hábito, ou seja, o consumidor se acostumou rapidamente ao elétrico como algo natural.
- Gerou escala, o que barateou baterias e componentes com rapidez.
- Forçou a construção de infraestrutura, desde pontos de recarga simples até sistemas mais sofisticados de troca de bateria.
Hoje, falar em mobilidade urbana na China é falar de um ambiente em que as motos elétricas são quase onipresentes, e em que o barulho de motor a combustão se tornou exceção em muitas regiões.
Ônibus, frotas e cidades inteiras eletrificadas
O passo seguinte foi mais ambicioso. Cidades como Shenzhen se tornaram referências mundiais ao eletrificar 100 por cento de suas frotas de ônibus urbanos. São milhares de veículos circulando todos os dias movidos apenas a bateria, em operação contínua.
Em outras regiões, bairros inteiros praticamente não contam mais com motos a gasolina, e taxistas e motoristas de aplicativo já operam rotinas inteiras com carros totalmente elétricos. Em algumas zonas, até testes com veículos autônomos elétricos já fazem parte do dia a dia, não apenas de projetos piloto isolados.
Esse movimento mostra que a China não ficou restrita a nichos de alto padrão. Ao contrário, levou o elétrico para o transporte popular, para o transporte coletivo e para o transporte de carga leve, exatamente onde a escala é maior.
Domínio dos insumos e da cadeia produtiva
Um dos pontos que diferencia a China dos demais países é o controle de partes fundamentais da cadeia produtiva.
O país domina:
- boa parte da mineração e do processamento de matérias primas estratégicas, como terras raras
- grande parcela da fabricação de células e módulos de baterias de íon lítio
- a produção de motores elétricos, eletrônica de potência e componentes críticos
Com isso, a China não apenas monta veículos elétricos, mas controla etapas essenciais do processo, desde o material bruto até o produto final. Essa integração permite reduzir custos, acelerar inovação e responder com rapidez a mudanças de demanda.
Enquanto isso, muitos países ocidentais tentam correr atrás, desenvolvendo projetos locais de produção de baterias e incentivando fábricas de veículos, mas partindo de uma base muito menos integrada.
O que a China construiu é um ecossistema completo
Outro equívoco comum no debate sobre mobilidade elétrica é olhar apenas para o veículo em si. O que a China mostra é que o diferencial competitivo está no ecossistema como um todo.
Entre os elementos que compõem esse ecossistema estão:
- redes extensas de estações de recarga rápida
- sistemas de troca de bateria em poucos minutos
- plataformas digitais integradas que reúnem pagamento, gestão do veículo e serviços
- programas de financiamento específicos para carros e motos elétricos
- seguros adaptados à realidade dos veículos elétricos
- infraestrutura de manutenção e reciclagem de baterias
Ou seja, não se trata apenas de vender carros ou motos elétricas, mas de organizar toda a vida útil do veículo, incluindo a segunda vida e o descarte da bateria.
O Ocidente chegou tarde e ainda olha para o retrovisor
Europa e Estados Unidos passaram anos discutindo metas climáticas e prazos para banir motores a combustão, enquanto a China avançava de forma prática, com políticas industriais agressivas, subsídios, incentivo à produção local e, principalmente, abertura para testar soluções em grande escala.
Hoje, mesmo com marcas fortes e produtos competitivos, é difícil para qualquer outro país alcançar o nível de maturidade que a China já atingiu. O país combina população gigante, capital disponível, capacidade de investimento governamental e um ecossistema empresarial disposto a apostar em novos modelos de mobilidade.
A presença de empresas como Tesla é importante para o avanço da tecnologia, mas a estrutura industrial que sustenta a massificação dos veículos elétricos é, em grande medida, chinesa.
O que isso significa para o resto do mundo
Para quem observa o mercado de forma estratégica, a questão central não é mais se o mundo vai seguir a China na mobilidade elétrica, mas em quanto tempo conseguirá operar em um patamar minimamente comparável.
Qualquer país ou empresa que deseje acelerar a adoção de veículos elétricos, seja em frota própria, seja em políticas públicas, esbarra em três realidades:
- Dependência da cadeia de baterias e componentes, amplamente concentrada na China.
- Necessidade de criar infraestrutura que vá além de pontos de recarga isolados.
- Urgência de construir cultura de uso, algo que a China vem desenvolvendo há mais de uma década.
Ignorar esse descompasso é perder tempo. Entender a experiência chinesa, ao contrário, é antecipar cenários. A China não está apenas na frente, ela já dita o roteiro.
Para explorar mais o assunto, confira um vídeo de análise de Theo Paul Santana sobre o Salão do Automóvel de São Paulo abaixo: