Imagine descobrir que você pagou mais caro por um produto por causa de um cartel. E que, mesmo após a punição dos envolvidos pelo Cade, você não tem como ser ressarcido diretamente. Essa é a lacuna que as chamadas Ações de Reparação por Danos Concorrenciais (ARDCs) buscam preencher — e que, até pouco tempo atrás, permanecia praticamente intocada no Brasil.
Previstas no Art. 47 da Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011), as ARDCs são o único instrumento legal para que consumidores e empresas prejudicadas por práticas anticoncorrenciais obtenham reparação direta por danos materiais e morais. Mas por que elas são tão raras no país?
Poucas ações, muitos obstáculos
O relatório “Ações de Reparação de Danos Concorrenciais no Brasil: Obstáculos e Sugestões” mapeou os entraves que dificultam a judicialização dessas ações. A comparação com a União Europeia, onde a Diretiva 2014/104/UE impulsionou a persecução privada, revela o atraso brasileiro.
Até 2022, o cenário era desanimador:
- Prescrição confusa: O prazo de 3 anos gerava insegurança sobre quando começava a contar.
- Acesso limitado a provas: Documentos de acordos de leniência e TCCs eram sigilosos.
- Dificuldade de quantificar o dano: As vítimas enfrentavam assimetria de informação e precisavam provar o nexo causal.
- Jurisprudência desfavorável: A maioria das ações do MP e de particulares foi considerada improcedente por falta de provas ou prescrição.
Lei nº 14.470/2022: um divisor de águas
Promulgada em novembro de 2022, a nova lei trouxe avanços significativos:
- Ressarcimento em dobro para os prejudicados.
- Incentivos a acordos: Signatários de leniência ou TCC não respondem solidariamente.
- Tutela de evidência: Decisões do Cade podem fundamentar liminares.
- Prescrição ampliada para 5 anos, com contagem a partir da publicação do julgamento do Cade.
- Pass-on defense invertido: Não se presume o repasse do sobrepreço; cabe ao réu provar.
Essas mudanças tornam o ambiente mais favorável para que vítimas de práticas anticoncorrenciais busquem reparação.
O que ainda trava o sistema
Mesmo com a nova legislação, persistem desafios:
- Morosidade judicial: O tempo do processo é o principal obstáculo apontado por especialistas.
- Baixa conscientização: Enquanto multinacionais estão atentas, empresas médias e pequenas desconhecem o instrumento.
- Complexidade metodológica: A quantificação de danos ainda é um gargalo técnico.
O que podemos aprender com a Europa
O modelo europeu oferece boas práticas:
- Presunção de dano em casos de cartel.
- Proteção ao enforcement público, com sigilo de documentos autoacusatórios.
- Incentivo à mediação e arbitragem, com suspensão do prazo prescricional e benefícios para réus que transacionam.
Sugestões para destravar o uso das ARDCs
O relatório propõe medidas concretas para fomentar o uso das ações:
- Governança e evidências: Regulamentar o uso de anonimização, tarjas e círculos de confidencialidade nos tribunais.
- Guias de cálculo de danos: Tornar os guias mais didáticos e incluir efeitos de volume e condutas restritivas.
- Fomento a soluções alternativas: Estender os benefícios da nova lei para quem optar por mediação ou arbitragem.
O futuro das ARDCs: mais ações, mais reparação
A boa notícia? A maioria dos especialistas entrevistados vê uma tendência positiva de crescimento das ARDCs, impulsionada pela nova legislação e pelo avanço do litigation finance — modelo em que terceiros financiam ações judiciais em troca de parte dos ganhos.
Se bem implementadas, essas ações podem se tornar um instrumento poderoso de justiça econômica, permitindo que o consumidor — e não apenas o Estado — seja protagonista na defesa da concorrência.
O Brasil começa a virar a chave. E o mercado, finalmente, pode começar a sentir os efeitos.
Acesse o briefing deste estudo preparado pela equipe da GZM clicando na imagem abaixo. Você poderá fazer o download do material, se quiser.
O estudo completo pode ser acessado neste link: https://direitorio.fgv.br/sites/default/files/arquivos/2023_07_19%20Vers%C3%A3o%20Final%20relat%C3%B3rio%20FDD_site.pdf
