A permanência da bandeira tarifária vermelha — a mais onerosa para os consumidores — no mês de setembro reacende um debate estrutural sobre o modelo de precificação da energia elétrica no Brasil.
E o que parece ser apenas um aumento na conta de luz esconde um sistema complexo, com efeitos profundos sobre a competitividade empresarial, a eficiência regulatória e a própria sustentabilidade econômica do país.
Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o sistema de bandeiras tarifárias, em vigor desde 2015, foi criado para refletir os custos reais de geração de energia, especialmente em momentos de escassez hídrica.
Quando os níveis dos reservatórios das hidrelétricas estão baixos — como ocorre em períodos de estiagem prolongada — o país recorre às usinas termelétricas, que têm custos operacionais significativamente mais altos. Esse custo adicional é repassado diretamente ao consumidor por meio das bandeiras tarifárias.
Isso ocorre porque a matriz energética brasileira ainda depende fortemente da geração hidrelétrica. Em anos de chuvas abaixo da média, os reservatórios não se recuperam, e o acionamento das termelétricas se torna inevitável.
Isso eleva o custo marginal da geração e pressiona o sistema tarifário. A imprevisibilidade climática, portanto, transforma-se em um risco econômico — especialmente para empresas que operam com margens apertadas ou em regiões com infraestrutura energética mais frágil.
A conta centralizadora e o subsídio cruzado
A gestão das receitas das bandeiras é feita pela Conta Centralizadora de Recursos de Bandeiras Tarifárias (CCRBT), administrada pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Os recursos arrecadados pelas distribuidoras são revertidos para essa conta, e depois repassados entre as empresas do Sistema Interligado Nacional (SIN) para cobrir os custos de geração mais caros.
Essa mecânica, no entanto, acaba por gerar um subsídio cruzado, onde os recursos recebidos em uma área podem ser usados para cobrir custos em outras. O estudo citado revelou que essa redistribuição não se baseia em critérios socioeconômicos ou no valor das tarifas residenciais, mas sim no perfil de custo de cada distribuidora e no tamanho de seu mercado.
Em outras palavras, não há garantia de que o dinheiro de regiões mais ricas ou com tarifas mais baixas está subsidiando as áreas mais pobres, por exemplo. Esse impacto pode ser sentido nas empresas instaladas em regiões em desenvolvimento de forma mais clara, pois alterações bruscas de custos, muitas vezes, terminam por gerar perda de competitividade ou mesmo déficits comerciais que impactam no curto prazo e podem até mesmo inviabilizar a continuidade das operações dessas empresas.
A pesquisa do Ipea também destacou um problema ainda mais grave: o “Repasse da Cobertura Própria”. Esse mecanismo ocorre quando distribuidoras, mesmo sem ter todos os seus custos cobertos, são obrigadas a transferir recursos para a CCRBT.
Isso faz com que os consumidores dessas áreas paguem pelo mesmo custo duas vezes: primeiro por meio da bandeira tarifária e, depois, por meio de reajustes na tarifa para cobrir o déficit que não foi coberto.
Propostas para um sistema mais justo e eficiente
As conclusões do estudo apontam para a necessidade de aprimoramentos regulatórios para mitigar esse subsídio cruzado. A pesquisa propõe uma nova metodologia para a CCRBT, onde as receitas arrecadadas em uma área de concessão seriam usadas prioritariamente para cobrir os custos dessa mesma área. Somente o excedente, caso exista, seria transferido para a conta centralizadora.
Essa mudança garantiria uma alocação de recursos mais eficiente e responsável, minimizando os déficits que, de outra forma, seriam repassados aos consumidores em processos tarifários subsequentes.
Em um cenário de tarifas elevadas e incertezas econômicas, a transparência e a eficiência do sistema de bandeiras são cruciais para a saúde financeira dos negócios e para a estabilidade econômica do país.
O que aconteceu
- A bandeira vermelha na tarifa de energia foi mantida para setembro, indicando custos elevados de geração.
- Um estudo do Ipea revelou falhas no sistema de redistribuição de receitas entre distribuidoras, gerando subsídios cruzados e distorções tarifárias.
- Empresas em regiões menos favorecidas podem ser duplamente penalizadas: pela bandeira e por reajustes tarifários decorrentes de déficits não cobertos.
Por que importa
- O sistema atual compromete a previsibilidade de custos para o setor produtivo.
- A dependência de variáveis climáticas — como chuvas e níveis de reservatórios — torna o modelo vulnerável e pouco resiliente.
- A falta de transparência na redistribuição de receitas entre distribuidoras pode gerar desequilíbrios regionais e perda de competitividade.
Quem impacta
- Consumidores residenciais, que enfrentam aumentos recorrentes na conta de luz.
- Empresas e indústrias, especialmente em regiões com menor infraestrutura energética.
- Distribuidoras de energia, que lidam com déficits operacionais e repasses obrigatórios.
- Gestores públicos, que precisam equilibrar sustentabilidade econômica com justiça tarifária.
Checklist de ações para gestores de empresas
- Monitorar bandeiras tarifárias mensalmente
→ Incorporar variações no planejamento financeiro e nos contratos de fornecimento. - Investir em eficiência energética: reduzir consumo em períodos críticos e adotar tecnologias de menor demanda.
- Avaliar fontes alternativas de energia: considerar geração distribuída (solar, biomassa) para mitigar riscos tarifários.
- Revisar contratos com fornecedores e distribuidores: negociar cláusulas que protejam contra oscilações abruptas de custo.
- Participar de fóruns setoriais e consultas públicas: influenciar políticas que afetam diretamente a competitividade do setor.
Análise GZM
A manutenção da bandeira vermelha é mais do que um reflexo da escassez hídrica — é um sintoma de gargalos estruturais que o Brasil precisa enfrentar com urgência. A dependência excessiva de variáveis climáticas para garantir energia acessível é um risco sistêmico que compromete o crescimento sustentável.
Por isso, é urgente a necessidade de acelerar projetos que ampliem a capacidade de geração, diversifiquem a matriz energética e fortaleçam a infraestrutura de transmissão e distribuição. O crescimento econômico passa pela energia — e essa energia não pode estar à mercê de chuvas incertas ou de recursos naturais cada vez mais escassos.
A transição energética precisa ser estratégica, resiliente e justa. O Brasil tem potencial para liderar esse movimento, mas precisa superar os entraves regulatórios e os modelos que penalizam quem mais precisa de previsibilidade: o setor produtivo, em geral, e o consumidor final, em particular.