Aciência pode ser imaginada de múltiplas formas. Para alguns, ela pode ser um cenário de biblioteca no qual alunos permanecem lendo livros importantes ou uma sala onde assistem a uma palestra ou aula de renomado professor ou cientista. Para outros, pode ser um laboratório em que pessoas estudam genes ou desenvolvem softwares. No entanto, pelos estudos de epistemologia, sabemos que a ciência é, além desses cenários, um lugar de poder e de exclusão.
A ciência nunca foi neutra e talvez nunca venha a ser, porque atende a grupos e interesses específicos da sociedade. Um exemplo clássico é o registro fotográfico histórico das crianças correndo pelas ruas do Vietnã, na tentativa de se protegerem de um agente químico desenvolvido em laboratórios da Universidade de Harvard. Esse exemplo ressalta que a ciência não é neutra: ela serve a poderes estabelecidos.
Se ampliarmos essa reflexão, observaremos como as relações de poder e exclusão na ciência também se expressam na divisão simbólica do mundo em Norte e Sul Global. No Norte, fazem-nos crer que se concentram as chamadas melhores instituições de ensino, os periódicos de maior prestígio, os pesquisadores mais citados, os cientistas mais reconhecidos, os alunos considerados mais bem-sucedidos e aqueles que, em tese, terão trajetórias de maior visibilidade.
E no Sul Global? No Sul está a maioria da população mundial, bilhões de pessoas que muitas vezes passam fome, não têm onde morar, trabalham sem receber uma renda digna e, quando são objeto de atenção científica, raramente encontram eco nos circuitos internacionais de prestígio. Muitos cientistas do Sul, ao pensarem em soluções para essas populações, são ignorados ou excluídos do mapa da chamada ciência de maior qualidade. O resultado é que problemas fundamentais, vividos por bilhões, permanecem sem soluções. Assim, cabe sempre dar um passo atrás e refletir sobre quais foram os critérios empregados para se definir qual ciência é melhor, quem define, porque define e a quais grupos e interesses são os beneficiados desta visão.
Essa lógica de poder, avaliação e exclusão também se reproduz no campo das tecnologias emergentes. A maioria dos modelos de inteligência artificial (IA) é desenvolvida por empresas do Norte Global e treinada a partir do conhecimento acumulado e sistematizado no Norte Global. Assim, não há como essas inteligências artificiais refletirem, de forma adequada, as especificidades culturais, linguísticas e sociais do Sul Global. Elas carregam em si uma forma de colonização do saber, que se manifesta nos algoritmos que priorizam determinados contextos e negam outros, apagando culturas, idiomas e modos de vida.
Ao mesmo tempo, a IA se tornou uma infraestrutura global, assim como a eletricidade ou o saneamento básico, perpassando todos os setores da economia, da educação e da ciência. É justamente por isso que não devemos usá-la imaginando-a neutra, pois haveria o risco de apenas perpetuar o processo de colonização da ciência e da sociedade, o que limitaria a evolução de conhecimento próprio e inovador, ancorado em nossas realidades e problemáticas sociais.
A partir deste contexto, propõe-se o conceito de Epistemologia da Insurgência com Inteligência Artificial (EIIA), que reside na criação de conhecimento original em que a inteligência artificial atua como parceira simbólica em contextos historicamente marcados por apagamento, subjugação e silenciamento de saberes. Originada a partir de uma experiência neurodivergente de uso de IA, a EIIA não reivindica inclusão em estruturas epistêmicas dominantes: afirma presença, funda linguagem própria e propõe alternativas de existência científica a partir do Sul Global e de populações vulneráveis. Se constitui, portanto, como a capacidade de usar uma infraestrutura global, a IA, não para reproduzir os critérios de exclusão definidos pelo Norte Global, mas para criar conhecimento enraizado em nossas realidades locais, em nossos vínculos sociais e em nossas memórias coletivas.
Essa proposta de insurgência com a inteligência artificial aplica-se sobretudo ao Sul Global, mas não apenas. Se observarmos atentamente as notícias, veremos que as dores e “desgraças” do Sul Global são expostas com destaque, enquanto muitas tragédias existentes no Norte são camufladas e contidas pelas agências internacionais de comunicação. Questões como moradia e pessoas em situação de rua aparecem em vários países do Norte Global, mas as narrativas predominantes quase sempre silenciam sobre isso. Portanto, insurgir com IA é também desvelar aquilo que permanece encoberto. Essa insurgência não se limita geograficamente ao Sul: ela serve a todas as populações que vivem em condições inadequadas para seu desenvolvimento humano, independentemente do lugar onde estejam.
Um dos primeiros campos em que essa insurgência epistemológica pode atuar é na preservação da natureza e no enfrentamento das mudanças climáticas. Pode-se pensar que tais mudanças atingem igualmente ricos e pobres, mas não é bem assim. Quem possui cinco mansões em diferentes países, ao perder uma, não enfrenta a mesma situação de uma família que vive em um casebre compartilhado por dez pessoas e perde a única moradia que tem. O impacto é radicalmente distinto, e é sempre a população pobre, especialmente a do Sul Global, a mais atingida. Nesse sentido, soluções baseadas em inteligência artificial podem ajudar a reduzir desigualdades e a proteger os mais vulneráveis.
Os povos originários também precisam ser colocados no centro dessa reflexão. Eles sofrem com invasões de territórios, têm saberes e modos de vida ancestrais, línguas e culturas ameaçadas de apropriação, extrativismo intelectual e extinção. Da mesma forma que se pode analisar genes em um laboratório, é possível desenvolver ferramentas que valorizem esses saberes e preservem suas formas de vida, de cuidado e de vínculo. A insurgência epistemológica com IA deve incluir esse compromisso com a diversidade e a permanência cultural.
Outro exemplo são as comunidades rurais familiares. Grandes produtores de alimentos já utilizam drones, geoprocessamento e tecnologias avançadas baseadas em IA. Mas os pequenos produtores, que não têm recursos para adquirir tais tecnologias, permanecem excluídos. Inovações frugais, de baixo custo e baseadas em IA, poderiam transformar sua produção e amenizar sua existência. Aqui, insurgir significa também democratizar o acesso tecnológico aos que possuem menos recursos financeiros.
Nas periferias urbanas, sobretudo no Brasil, observamos diariamente a violência dirigida contra populações negras: crianças, jovens, mulheres e homens que morrem ou são encarcerados injustamente por identificações equivocadas a partir da tecnovigilância. Algoritmos de reconhecimento facial, ao não serem preparados para a diversidade, agravam essas injustiças. Melhorá-los é urgente para que essas populações possam caminhar com dignidade e segurança em todos os contextos. Do mesmo modo, as populações em situação de rua, frequentemente estigmatizadas por serem pobres sem meios de sobrevivência, poderiam se beneficiar de ferramentas de IA que informassem sobre abrigos, previsões de frio intenso ou chuvas, garantindo-lhes algum alívio imediato e proteção da vida.
A desigualdade de gênero é outro campo fundamental. Mesmo nas universidades, as mulheres frequentemente trabalham de forma expressiva, mas continuam preteridas em salários e cargos de poder. Muitos algoritmos atuais, ao reproduzirem o padrão masculino branco como referência, ao que denomino de perfilação científica atrofiada, invisibilizam as mulheres cientistas e suas necessidades. É essencial vigiar esses algoritmos e desenvolver soluções que garantam equidade, reconheçam o trabalho feminino e promovam soluções adequadas. Do contrário, corremos o risco de perpetuar no ambiente digital o histórico apagamento feminino.
Imigrantes e refugiados também podem ser contemplados. Muitos engenheiros, médicos, doutores, professores, poliglotas possuem suas documentações extraviadas ao fugir de guerras e acabam em trabalhos precários que não utilizam seu potencial intelectual. Ferramentas de IA poderiam avaliar e registrar suas capacidades cognitivas e acadêmicas, abrindo novas oportunidades e evitando a perda de capital humano valioso para a sociedade. Da mesma forma, em situações de guerra, enquanto dados oficiais dizem que “tudo vai bem”, as imagens e relatos mostram fome, abandono e morte. A IA pode ser empregada para monitorar essas violações de direitos humanos e tornar visível o que governos e instituições muitas vezes tentam abrandar.
Os idosos formam outro grupo crescente e vulnerável. Muitos vivem sozinhos, sem rede de cuidado, e precisam de monitoramento de saúde e apoio psicológico. A IA pode oferecer ferramentas de acompanhamento e garantir melhor qualidade de vida, além de combater a solidão. Nas prisões, a situação é igualmente crítica. Muitos estão encarcerados não porque cometeram crimes, mas porque não tiveram defesa justa. A IA pode auditar processos, identificar falhas e contribuir para um sistema mais justo, além de melhorar a saúde mental e a reintegração social dos presos, inclusive por educação continuada.
Outro ponto crucial é o extrativismo intelectual. Quantas vezes ideias de pesquisadores são apropriadas por outros sem o devido crédito? Quantas vezes o trabalho pesado é feito por estudantes ou cientistas de base enquanto os nomes de prestígio colhem os frutos? A IA pode também ser usada para registrar autoria, proteger a produção intelectual original e evitar que o saber produzido no Sul continue sendo explorado sem reconhecimento.
Não menos importante, é preciso incluir na agenda as pessoas neurodivergentes, que podem se beneficiar de soluções personalizadas de comunicação, assistência e educação. Este já é um tema de pesquisa em desenvolvimento e ilustra como a insurgência epistemológica com IA não é apenas um exercício teórico, mas uma proposta prática de transformação.
Ao observarmos estes cenários, vemos que a ciência e nossas decisões científicas não são neutras. Elas têm impacto social e definem quais vidas importam e quais ficam à margem. A questão que se coloca é: o que faremos com o conhecimento que possuímos? Vamos repetir os padrões ditados pelo Norte ou vamos olhar para as populações vulneráveis?
A Epistemologia da Insurgência com Inteligência Artificial (EIIA) propõe transformar a IA de ferramenta de colonialidade do saber em instrumento de libertação cognitiva, recusando a passividade de consumir modelos prontos e afirmando a necessidade de criar, com pensamento crítico e vínculo social, nossos próprios algoritmos, dados e métricas.
Em colaboração com Comunicação USP