Em meio a um ambiente global marcado por instabilidade, tensões comerciais e guerras de narrativas, os conselhos de administração das empresas brasileiras enfrentam um desafio estratégico urgente: incorporar a geopolítica como parte central da governança corporativa.
Essa é a principal conclusão de uma pesquisa inédita realizada pela consultoria Better Governance em parceria com o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), que ouviu 357 conselheiros e diretores de empresas atuantes no Brasil. A pesquisa já foi noticiada anteriormente na GZM, que traz novos detalhes agora.
O levantamento revela que 87% dos entrevistados reconhecem a importância da geopolítica para os negócios, mas apenas metade afirma que o tema está presente nas reuniões de planejamento estratégico. A institucionalização do debate ainda é limitada, e menos de 40% dos diretores enxergam processos estruturados para monitorar riscos geopolíticos.
Principais achados da pesquisa
- Apenas 50% dos conselheiros discutem geopolítica em reuniões estratégicas
- 33% dos entrevistados discordam que há informações suficientes para decisões estratégicas
- Menos de 49% dos diretores veem alinhamento entre conselho e diretoria sobre o tema
- Apenas 42% acreditam que há alocação adequada de recursos para lidar com riscos geopolíticos
- 43% dos conselheiros e 37% dos diretores não confiam na capacidade das tecnologias atuais, como IA, para analisar o contexto geopolítico
Para Sandra Guerra, sócia-fundadora da Better Governance e cofundadora do IBGC, o estudo mostra que os conselhos ainda atuam de forma reativa e pontual, quando deveriam assumir uma postura prospectiva e estratégica. “A oportunidade está em inserir esse debate de maneira mais consistente, ampliando a capacidade de antecipação de impactos e a identificação de oportunidades de valor”, afirma.
A GZM já havia antecipado os primeiros resultados da pesquisa em reportagem anterior. Agora, em entrevista exclusiva, Sandra Guerra aprofunda os dados e propõe caminhos para que os conselhos se tornem protagonistas diante da instabilidade global. Confira:
GZM: O estudo mostra que muitos conselhos ainda tratam a geopolítica de forma reativa. Quais seriam os primeiros passos para torná-la uma pauta estratégica e recorrente?
Sandra: O ponto de partida é reconhecer que a forma de tratar a geopolítica dependerá do setor, da amplitude internacional de atuação, da complexidade da cadeia logística e até mesmo da natureza da atividade da empresa. Esses fatores definem o nível de exposição aos riscos, as oportunidades e, portanto, o grau de estruturação e relevância que o tema deve ganhar na governança.
Dito isso, a geopolítica não pode mais ser abordada apenas quando um evento crítico acontece ou em situações específicas. Hoje, o que se observa é que o tema frequentemente surge de forma pontual, quando o conselho discute restrições vividas, uma operação estratégica ou mesmo a entrada em novos mercados.
Nessas situações, as implicações geopolíticas acabam aparecendo como pano de fundo, mas não de maneira estruturada e contínua. Ela precisa ser incorporada ao modelo de gestão de riscos e à agenda temática anual do conselho, tornando-se parte natural das discussões estratégicas.
Além de estar presente nas sessões dedicadas ao planejamento estratégico — que devem ocorrer com regularidade, dada a velocidade das transformações globais — o tema também precisa ser tratado nas reuniões ordinárias do conselho ao longo do ano. Essa disciplina permite revisitar continuamente os riscos e oportunidades geopolíticas, integrando novas informações, análises e perspectivas.
Para enriquecer esse debate, é fundamental trazer contribuições de líderes empresariais que atuam em regiões fortemente impactadas e de executivos da própria companhia que operam em geografias ou áreas de negócio mais expostas a esses fatores. Essa visão prática, combinada a uma análise estratégica consistente, ajuda os conselhos a antecipar cenários e a transformar a geopolítica em um componente de risco e oportunidade permanente e estruturado da sua deliberação estratégica.
GZM: Como a Better Governance enxerga o papel das tecnologias emergentes, como inteligência artificial, na análise de riscos geopolíticos? Há resistência ou falta de preparo?
Sandra: Esse ainda é um tema emergente nos conselhos de administração e vem sendo analisado com cautela, sobretudo quando se fala da adoção mais ampla de agentes de inteligência artificial para diferentes aplicações dentro das organizações. A primeira preocupação está na segurança e na confidencialidade: existe o receio de que informações estratégicas ou relatórios sensíveis possam ser processados por ferramentas de inteligência artificial sem as devidas garantias de proteção, o que poderia expor dados críticos da companhia.
Outro ponto relevante é a neutralidade – em lugar de vieses que podem estar embutidos nos algoritmos – e a consideração de padrões éticos humanos. A ausência desses parâmetros pode levar a análises enviesadas ou interpretações imprecisas, comprometendo a qualidade das informações sobre as quais os conselhos baseiam suas deliberações.
Paralelamente, muitos conselhos têm buscado enriquecer suas discussões trazendo especialistas externos ou líderes empresariais de regiões e setores com maior exposição à tecnologia, para ampliar a visão e trazer elementos práticos.
No início, o mercado chegou a adotar a figura do chamado “conselheiro digital”, mas a experiência mostrou que essa solução não atende à necessidade de que cada conselheiro tenha competências e vivências abrangentes e capazes de cobrir toda a variedade de responsabilidades e decisões do conselho — da deliberação estratégica à supervisão do desempenho da empresa e da gestão executiva.
Além disso, apenas um conselheiro com esse perfil não é suficiente; o colegiado como um todo precisa aprofundar seu entendimento sobre o assunto.
Por fim, mesmo dentro das empresas, a inteligência artificial ainda vem sendo usada mais para ganhos táticos, como eficiência operacional ou agilidade comercial. A discussão sobre seu papel em análises complexas, como os riscos e oportunidades geopolíticas, ainda está em fase inicial e precisará evoluir para se tornar parte estruturada da agenda dos conselhos.
GZM: Quais são os principais riscos que empresas brasileiras enfrentam hoje por não integrarem a geopolítica em seus processos de governança?
Sandra: O principal risco é ampliar a própria exposição aos fatores geopolíticos, quando esses fatores não são analisados na sua totalidade, complexidade e velocidade no âmbito do conselho. Se não forem integrados às práticas estruturadas de governança, as empresas ficam vulneráveis a eventos que podem impactar diretamente sua operação, seu mercado e até a sustentabilidade do negócio.
Mas há outro ponto que muitas vezes é ainda menos explorado: a perda de oportunidades. O contexto geopolítico não traz apenas riscos; ele cria também novas possibilidades para setores e empresas que têm capacidade de responder rapidamente a mudanças nas cadeias globais de valor.
Por exemplo, quando um país envolvido em um conflito deixa de fornecer determinado insumo ou produto, abre-se espaço para que empresas de outras regiões assumam esse mercado. O mesmo ocorre quando restrições tarifárias afetam determinados países: enquanto para alguns representam risco, para outros podem significar uma chance de crescimento e diversificação de mercados.
O problema é que, em muitos casos, essas oportunidades podem não ser identificadas ou analisadas com a agilidade necessária. Os conselhos acabam tendo acesso limitado a informações ou a análises estruturadas que permitam capturar rapidamente esses movimentos.
Nesse contexto, a inteligência artificial pode ter um papel relevante: ao ser alimentada continuamente com informações em tempo real, ela pode correlacionar diferentes eventos geopolíticos e movimentos de mercado à medida que os fatos se desenrolam. Esse recurso oferece ao conselho uma base dinâmica e integrada de entendimento, capaz de apoiar respostas rápidas e bem fundamentadas.
Em resumo, não integrar a geopolítica às práticas estruturadas de governança não apenas amplia a exposição a riscos, mas também reduz a capacidade de capturar oportunidades que podem ser decisivas para o reposicionamento estratégico das organizações.
GZM: A pesquisa revelou diferenças de percepção entre conselheiros e diretores. Como essas divergências impactam a tomada de decisão e o alinhamento estratégico?
Sandra: Diferenças de percepção entre conselheiros e executivos são naturais e até desejáveis. Executivos, por estarem mais próximos da operação e das demandas do dia-a-dia, têm mais informação e tendem a ter maior foco no curto prazo, embora também considerem o longo prazo em suas decisões. Já os conselheiros devem trazem uma visão mais estratégica, orientada à perenidade dos negócios e menos vinculada às demandas imediatas, beneficiando-se da experiência acumulada em outros setores e empresas.
Quando essas perspectivas distintas são contrapostas de forma construtiva, ocorre um processo de troca e partilhamento de informações que enriquece a tomada de decisão. É justamente desse diálogo — entre a visão detalhada dos executivos e a perspectiva ampla dos conselheiros — que deve surgir o alinhamento estratégico necessário para orientar a empresa.
GZM: Que tipo de capacitação ou estrutura a Better Governance recomenda para que conselhos estejam mais preparados para lidar com crises geopolíticas futuras?
Sandra: O conceito de Lifelong Learning aplica-se plenamente aos conselheiros que devem manter um processo contínuo de atualização — não apenas para acompanhar informações sobre o contexto geopolítico, mas para desenvolver novos conhecimentos e competências necessários para lidar com as transformações incessantes do ambiente de negócios e da sociedade.
Essa capacitação deve ser responsabilidade tanto dos próprios conselheiros, que precisam buscar esse aprendizado ao longo da vida, quanto das empresas, que devem elaborar e oferecer programas estruturados de desenvolvimento, os quais devem estar inseridos na agenda anual do conselho e contemplar tanto os temas emergentes — como, por exemplo, as habilidades socioemocionais, que ganham cada vez mais relevância — além de outras competências críticas para o exercício do papel de conselheiro de administração.

O relatório completo da pesquisa está disponível nos sites da Better Governance e do IBGC, com análises detalhadas e recomendações para empresas que desejam fortalecer sua governança diante dos riscos geopolíticos.