A inteligência artificial (IA) deixou de ser uma tendência emergente para se tornar um divisor de águas na estratégia empresarial. Em 2025, o debate sobre IA nas empresas já não gira em torno de “se” deve ser adotada, mas “como” e “com que estrutura” ela pode gerar valor real.
Dois estudos globais de grandes consultorias — o KPMG Global Tech Report 2024 e o State of Generative AI in the Enterprise Q4 2024, da Deloitte — revelam que o sucesso da IA corporativa está diretamente ligado à capacidade de integrar dados, capacitar equipes e construir governança sólida.
No Brasil, especialistas também reforçam que a tecnologia, por si só, não é suficiente. A transformação exige visão estratégica, curadoria de dados, infraestrutura robusta e, acima de tudo, pessoas preparadas para lidar com a complexidade da nova era digital.
O que dizem os estudos: IA como motor estratégico — mas com freios organizacionais
O relatório da Deloitte, baseado em entrevistas com 2.773 líderes de 14 países, mostra que 74% das empresas já registram retorno sobre investimento (ROI) em suas iniciativas mais avançadas de IA generativa. No entanto, apenas 20% dessas iniciativas superam os 30% de ROI, e a maioria ainda enfrenta barreiras como falta de dados de qualidade, governança frágil e resistência cultural.
Já o estudo da KPMG, com 2.450 executivos de 26 países, alerta para o risco de decisões apressadas diante do ritmo acelerado da inovação. A recomendação é clara: resistir ao hype e adotar uma abordagem estratégica, baseada em evidências e alinhada aos objetivos de negócio.
Ambos os estudos convergem em um ponto: o sucesso da IA não depende apenas da tecnologia, mas da capacidade organizacional de absorvê-la com responsabilidade, foco e visão de longo prazo.
A base invisível da IA: dados, curadoria e infraestrutura
O professor Lacier Dias, CEO da B4Data e especialista em transformação digital, é enfático: “Nenhuma tecnologia, em especial a inteligência artificial, constrói relatórios ou análises relevantes se não estiver devidamente alimentada. E quem alimenta essas tecnologias são os bancos de dados corporativos.”
Segundo ele, a maioria dos sistemas empresariais não foi projetada para organizar informações de forma que a IA possa utilizá-las como fonte de conhecimento. “É justamente aí que o ser humano se torna peça indispensável, atuando como curador de dados, filtrando o que é relevante, organizando e garantindo a confiabilidade da base para que a IA possa processar e transformar informações em análises consistentes.”
Essa visão é corroborada pelo relatório da Deloitte, que aponta a gestão de dados como o principal fator de sucesso em projetos de IA. Um dos entrevistados citados na pesquisa, ex-gerente de engenharia de software de uma big tech, afirma: “Embora os modelos e o poder computacional existam, acessar os dados certos foi o maior gargalo. Implementamos uma estratégia centralizada de dados para acelerar o desenvolvimento dos modelos”.
Capacitação e cultura: o elo perdido da transformação
João Neto, CRO da Unentel, destaca que 96% dos CIOs pretendem ampliar investimentos em IA, mas apenas 49% acreditam que suas equipes estão preparadas: “Sem treinamento adequado e dados de qualidade, o investimento em IA pode não gerar o impacto esperado. E esse também é um papel dos líderes: capacitar pessoas, garantir suporte técnico robusto e integrar sistemas para transformar IA em vantagem competitiva real.”
A Deloitte reforça esse ponto em seu estudo: embora o entusiasmo da liderança seja alto, o acesso à IA ainda está limitado a menos de 40% da força de trabalho nas empresas. E mesmo entre os que têm acesso, menos de 60% usam a tecnologia diariamente.
Já Vinicius Sousa, da consultoria de inovação Inventta, alerta para a confusão conceitual que ainda permeia o mercado: “Muitos chamam de IA o que, na prática, são apenas automações simples, como RPAs. Essa confusão leva empresas a aplicar tecnologia como fim em si mesma, em vez de como meio para resolver problemas de forma eficiente.”
Onde a IA já entrega valor: eficiência, personalização e predição
Apesar dos desafios, há áreas em que a IA já mostra resultados consistentes. Segundo Vinicius Sousa, os ganhos são claros em automatização de processos internos repetitivos (backoffice, logística, suporte), personalização de produtos e serviços com base em dados de clientes e tomada de decisão preditiva em supply chain e finanças.
Esses casos estão alinhados aos dados do estudo da Deloitte, que apontam IT, operações, marketing e atendimento ao cliente como os setores com maior maturidade em IA generativa.
Agentes de IA: a nova fronteira da automação inteligente
Ariane Abreu, diretora da Total IP+IA, destaca que os Agentes de IA são o destaque de 2025: “Essas soluções estão sendo projetadas para tomar decisões em tempo real, analisar dados complexos e colaborar ativamente com equipes humanas. É uma mudança de paradigma: saímos da execução de tarefas isoladas para a orquestração de processos completos.”
O estudo da Deloitte confirmou essa tendência, apontando que 52% das empresas estão interessadas em agentes autônomos, e 26% já exploram seu desenvolvimento em larga escala. Os casos de uso incluem:
- Atendimento ao cliente com consultores digitais
- Gestão de risco e crédito com análise de dados não estruturados
- Prevenção de fraudes com monitoramento inteligente
- Infraestrutura com sensores IoT e manutenção preditiva
ROI e escalabilidade: o desafio da sustentabilidade
Embora 74% das empresas digam que suas iniciativas mais avançadas em IA estão atendendo ou superando expectativas de ROI, apenas 30% dos projetos em fase de piloto devem ser escalados nos próximos seis meses. Isso revela um gargalo entre experimentação e adoção plena.
Vinicius Sousa propõe um checklist para evitar frustrações:
- O problema é realmente relevante e justifica o investimento?
- Os dados disponíveis têm qualidade e volume adequados?
- Existe clareza sobre quem implementará e monitorará o projeto?
- A solução proposta tem potencial de escala ou é apenas um piloto pontual?
- Os riscos legais, de compliance e regulatórios estão mapeados?
Formação de talentos: o exemplo do Magalu
No Brasil, a varejista Magalu lançou o primeiro programa de trainee focado em IA, atraindo mais de 14 mil inscritos logo em seus primeiros dias, segundo comunicado da empresa. Segundo Patricia Pugas, diretora-executiva de gestão de pessoas do Magalu, “este programa é estratégico para preparar uma nova geração de profissionais com alta capacidade técnica e analítica, capazes de aplicar IA no desenvolvimento de soluções que transformem os negócios e a experiência dos clientes”.
Ainda segundo a empresa, a iniciativa está diretamente ligada ao novo ciclo estratégico da companhia, com início previsto para 2026, reforçando a importância de formar talentos com visão de dados e tecnologia.
Governança e ética: o equilíbrio entre inovação e responsabilidade
Apesar do apelo da ferramenta, a adoção da IA exige cuidados com vieses algorítmicos, privacidade de dados e transparência. A Deloitte aponta que a conformidade regulatória é hoje o principal obstáculo para a escalabilidade da IA. Ariane Abreu reforça: “Para aproveitar todo o potencial dessa transformação, as empresas precisam investir em tecnologia e em processos claros de governança, supervisão humana constante e equipes multidisciplinares.”
O futuro da IA nas empresas: pragmatismo, foco e reinvenção
O relatório da KPMG resume bem o momento atual: “Com o ritmo acelerado da inovação, líderes precisam resistir ao hype e adotar uma abordagem estratégica, baseada em evidências, alinhada aos objetivos do negócio e sustentada por métricas claras”.
Já a Deloitte conclui que o futuro da IA será construído por organizações que souberem integrar tecnologia, pessoas e processos. “A jornada da IA é longa e exige paciência, visão e capacidade de adaptação. O sucesso virá para quem estiver disposto a fazer o trabalho duro e estruturar uma transformação real”.
Análise GZM: IA exige uma leitura tridimensional para gerar valor real nas empresas
À medida que a inteligência artificial se consolida como ferramenta estratégica no ambiente corporativo, torna-se evidente que seu sucesso não depende apenas de domínio técnico ou entusiasmo tecnológico. A Gazeta Mercantil propõe uma leitura tridimensional sobre o uso da IA nas empresas — uma abordagem que considera não apenas o que a tecnologia pode fazer, mas por que, para quem e com que segurança ela deve ser aplicada.
1. Produtividade: a dimensão mais visível, mas não suficiente: A primeira camada — e geralmente a mais fácil de ser mensurada — é a da produtividade. Aqui, a IA atua na melhoria de processos, automação de tarefas repetitivas, redução de custos operacionais e aumento da eficiência. Essa dimensão é essencial, mas isolada, pode levar à aplicação superficial da tecnologia, sem conexão com os objetivos maiores da organização.
2. Intencionalidade: alinhamento estratégico como diferencial competitivo: A segunda dimensão é a intencionalidade. Trata-se de entender como os ganhos de produtividade se encaixam na estratégia da empresa. A IA deve ser usada para resolver problemas que realmente importam, apoiar decisões críticas e gerar diferenciais competitivos. Sem esse alinhamento, há risco de dispersão de recursos em projetos que não contribuem para o crescimento sustentável ou para a proposta de valor da marca.
3. Segurança da informação: o pilar invisível, mas indispensável: A terceira dimensão — e talvez a mais negligenciada — é a segurança da informação. A IA depende de dados, e dados são ativos sensíveis. Garantir a integridade, privacidade e conformidade legal no uso dessas informações é fundamental. Isso inclui desde a proteção contra vazamentos e ataques cibernéticos até o respeito às legislações de proteção de dados e à ética no uso de algoritmos.
Concluindo, as empresas que desejam extrair valor real da IA precisam ir além da adoção técnica. É preciso construir uma cultura de dados, investir em capacitação, alinhar tecnologia à estratégia e garantir que a segurança seja parte integrante da jornada. A inteligência artificial não é apenas uma ferramenta — é um vetor de reinvenção. E como tal, exige visão, responsabilidade e profundidade.