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Mercado Livre na farmácia: um Cavalo de Troia?

Autor atua com pesquisa que investiga a intersecção entre Propriedade Intelectual, Direito Econômico e Geopolítica. Como sócio da Balconi Moreti, auxilia empresas a navegarem os desafios estratégicos da nova economia
Por Lucas Ruiz Balconi, advogado, Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela USP e estrategista focado na governança e valoração de ativos intangíveis.

O mercado financeiro costuma ser um medidor relevante para as mudanças mercadológicas. E ele não deixou dúvidas: recentemente, as ações das maiores redes de farmácias do Brasil, como Raia Drogasil e Pague Menos, sofreram uma baixa significativa. A causa não foi a inauguração de uma centena de lojas por um novo concorrente, mas um movimento modesto, a notícia de que o Mercado Livre adquiriu uma única farmácia na Zona Sul de São Paulo.

A reação, aparentemente desproporcional, revela uma verdade complexa. O mercado não viu a compra de um simples CNPJ, ele entendeu que o Mercado Livre não está apenas entrando no varejo farmacêutico, ele tende a digitalizar um dos setores mais regulados e protegidos do país, levantando questões cruciais sobre concorrência e, principalmente, a privacidade de dados de saúde.

Assim, o avanço do Mercado Livre sobre o setor farmacêutico não desafia apenas um, mas três pilares regulatórios brasileiros simultaneamente: a Regulação Sanitária (ANVISA), a Privacidade dos Dados (ANPD e LGPD) e a Defesa do mercado e da Concorrência (CADE).

O precedente mexicano

Para entender a magnitude da apreensão, não é preciso especular. Basta olhar para o norte, para o roteiro que o Mercado Livre já executou com sucesso no México. Lá, a empresa lançou uma robusta seção de “Saúde e Equipamentos Médicos”, firmando parcerias com gigantes locais do varejo farmacêutico e estabelecendo uma operação logística de entrega no mesmo dia para uma vasta gama de medicamentos de venda livre (MIPs). O resultado foi a conquista de uma presença de mercado relevante em um tempo notavelmente curto.

Este precedente é o que transforma a compra de uma farmácia no bairro do Jabaquara, em São Paulo, de um fato isolado em um projeto-piloto. O Brasil, com seu mercado continental e sua população altamente conectada, é um mercado de extrema relevância. A questão é que, para aplicar o manual mexicano aqui, era preciso resolver o “problema” regulatório brasileiro.

A suposta “legalidade”

A entrada do Mercado Livre no setor não se deu por uma afronta à regulação, mas por uma interpretação – ao meu ver – um tanto quanto perigosa dela. A compra da farmácia física não foi uma escolha, mas uma imposição da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 44/2009 da ANVISA, que exige, em seu artigo 52, que a venda de medicamentos pela internet seja realizada apenas por farmácias e drogarias físicas, abertas ao público e com farmacêutico responsável presente.

Em outras palavras, o Mercado Livre transformou o que seria uma barreira de entrada intransponível – a impossibilidade de vender medicamentos diretamente de seus centros de distribuição – em uma oportunidade. 

Assim, uma regra pensada para o contexto da farmácia de bairro que faz entregas por telefone – lembrando que a regra é de 2009 – foi convertida na chave de acesso para a maior plataforma de e-commerce e logística da América Latina. A pergunta que se impõe é inevitável: a regulação sanitária, criada numa era pré-marketplace digital, está preparada para a escala e o poder de um ecossistema como este?

Bomba-Relógio da privacidade: A Memed e a LGPD

A compra da farmácia e suas questões regulatórias não é uma questão isolada, a ligação com a empresa Memed é um dos pontos principais. A farmácia adquirida era controlada pela Memed, uma plataforma de prescrição digital que conecta mais de 260 mil médicos e processa milhões de receitas mensalmente. Embora as partes neguem um acordo comercial imediato, a conexão umbilical entre elas revela a ambição de longo prazo: ir além das vendas de produtos que não dependem de receita e prescrição médica, e alcançar o bilionário mercado de medicamentos tarjados.

Além disso, é neste ponto que a discussão transcende o direito econômico e sanitário, e adentra o terreno sensível da proteção de dados. A potencial integração entre o universo de dados do Mercado Livre (o que você compra, onde mora, o que busca, sua capacidade financeira via Mercado Pago) e o ecossistema de dados da Memed (suas condições de saúde, seus tratamentos, os medicamentos que lhe são prescritos) tem o poder de criar um “Big Brother da Saúde” de proporções inéditas.

Sob a ótica da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o alerta é máximo. Como será gerido o consentimento do titular para o cruzamento desses dados sensíveis? A conveniência de receber um medicamento em casa virá acompanhada da cessão implícita de informações para a criação de perfis detalhados de saúde, que podem ser usados para fins de marketing, precificação de produtos financeiros ou outras finalidades que extrapolam o tratamento? A privacidade dos dados de saúde, um dos mais íntimos do cidadão, corre o risco de se tornar o preço oculto da conveniência.

Concorrência e o CADE

Já no campo concorrencial, o CADE aprovou a operação sem restrições, argumentando, de forma tecnicamente correta para o momento, que a ausência de atuação prévia do Mercado Livre no setor impede a caracterização de uma sobreposição horizontal. A análise, contudo, parece perigosamente estática. O órgão avaliou a compra de uma loja, mas o risco concorrencial não reside no presente, e sim no poder de alavancagem futuro.

Quando a operação escalar, o Mercado Livre terá a faca e o queijo na mão: poderá usar sua posição dominante como marketplace para favorecer sua própria operação farmacêutica em detrimento de outras redes de farmácias que, ironicamente, são suas clientes na plataforma. A integração vertical e o potencial de auto preferência (self-preferencing) são desafios clássicos na regulação de big techs, e o CADE não poderia ignorar esses fatos, mas preferiu não olhar.

O movimento do Mercado Livre é emblemático da nova economia digital: legalmente sofisticado, estrategicamente agressivo e eticamente complexo. Não se trata de ser contra a inovação ou a concorrência, que podem trazer benefícios ao consumidor. Trata-se de alertar que nossos marcos regulatórios – ANVISA, CADE e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) – precisam operar de forma coordenada e proativa, não reativa.

A transformação digital do varejo farmacêutico é inevitável. Cabe aos reguladores e à sociedade civil garantir que ela ocorra sob as regras que protejam a saúde pública, a concorrência leal e, acima de tudo, o direito fundamental à privacidade dos cidadãos. A conveniência não pode custar os nossos dados mais sensíveis.

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