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Novas MPs confirmam um setor elétrico em transformação no Brasil  

Medidas provisórias dividem temas urgentes e estruturais, impactam tarifas e subsídios, abrindo caminho para a modernização do mercado de energia no Brasil

O setor elétrico brasileiro vive um momento decisivo. Com a aprovação da Medida Provisória 1.300 e a tramitação da MP 1.304, o país inicia uma nova fase de transição regulatória, marcada por ajustes imediatos e debates complexos sobre o futuro da energia. As duas MPs, publicadas em maio e julho de 2025, reorganizam regras tarifárias, revisam subsídios e redesenham o papel dos agentes públicos e privados no mercado.

A estratégia do governo foi dividir os temas: a MP 1.300 trata de questões urgentes e consensuais, enquanto a MP 1.304 concentra os pontos estruturantes, como a abertura do mercado livre para consumidores de baixa tensão, a revisão da geração distribuída (GD) e a limitação dos encargos da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).


Contexto histórico: da verticalização à liberalização pendente: Desde os anos 1990, o setor elétrico brasileiro passou por reformas que abriram espaço para agentes privados, separaram atividades de geração, transmissão e distribuição, e criaram o mercado livre de energia. A Lei nº 9.074/1995 previa a abertura total do mercado em oito anos — o que ainda não se concretizou.

Hoje, cerca de 46% da energia consumida no país está no mercado livre, mas apenas 80 mil consumidores têm acesso à modalidade, frente a mais de 90 milhões de unidades consumidoras. “Não é justo limitar esse acesso. É inaceitável que a maioria da população deixe de se beneficiar com custo de energia elétrica até 30% menor”, afirma Luiz Fernando Leone Vianna, vice-presidente Institucional e Regulatório do Grupo Delta Energia.

MP 1.300: medidas imediatas e estabilidade regulatória: A MP 1.300 foi aprovada com foco em medidas urgentes e de impacto direto para os consumidores. Entre os principais pontos estão:

      • Tarifa social ampliada: famílias de baixa renda que consomem até 80 kWh por mês passam a ter acesso facilitado ao benefício.

      • Rateio dos custos das usinas nucleares Angra 1 e 2: todos os consumidores passam a dividir os custos dessas usinas, incluindo os do mercado livre.

      • Descontos para irrigantes: produtores rurais terão tarifas reduzidas em horários específicos, definidos pelas distribuidoras.


    Essas medidas ajudam a aliviar o bolso de quem mais precisa, mas também geram preocupações sobre o equilíbrio financeiro do setor. “São cerca de R$ 4,5 bilhões para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e impacto tarifário de 1,4% para os demais consumidores”, alerta Vianna. 

    Daniela Afonso, advogada sócia do escritório Siqueira Castro, complementa: “Isso pode abrir espaço para questionamentos jurídicos, se não for devidamente endereçado”.

    A retirada de temas estruturantes e seus riscos jurídicos: A exclusão de trechos mais complexos da MP 1.300 e sua transferência para a MP 1.304 foi uma decisão política para garantir a aprovação imediata de medidas consensuais. No entanto, especialistas alertam para os riscos dessa fragmentação.

    “A retirada de trechos estruturantes da MP 1.300 e sua migração para outra MP abre espaço para mais insegurança jurídica no setor”, afirma Daniela Afonso. “O risco é aumentar a insegurança jurídica e afugentar investimentos”.

    Ana Karina Souza, sócia de Infraestrutura e Energia do escritório Machado Meyer, reforça: “Fragmentar a agenda entre duas medidas provisórias resultou de uma solução e alinhamento político no âmbito do Congresso Nacional. Essa solução foi guiada pela intenção de permitir maior tempo para o debate de algumas das disposições que então constavam da MP 1.300”.

    Geração distribuída: estabilidade ou adiamento? Um dos pontos mais sensíveis foi a retirada de dispositivos sobre geração distribuída (GD), especialmente energia solar. A Lei nº 14.300/2022 consolidou regras de transição até 2045. Alterações abruptas poderiam gerar alegações de violação ao ato jurídico perfeito e pedidos de tutela judicial.

    “Ao retirar a GD da MP 1.300, o legislador optou por adiar um debate difícil, mitigando litígios imediatos”, explica Ana Karina Souza. “Essas discussões foram transferidas para a MP 1.304, que deverão ser acompanhadas de perto.”

    ANEEL assume papel central na gestão tarifária: Outro ponto relevante foi a transferência da competência sobre recursos tarifários do Ministério de Minas e Energia (MME) para a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). A mudança reforça o papel técnico da agência e limita decisões políticas sobre alocação de recursos.

    “O art. 174 da Constituição autoriza a atuação regulatória do Estado, e a Lei nº 9.427/1996 criou a ANEEL justamente para exercer esse papel”, explica Ana Karina Souza. “A ANEEL já possui atuação na gestão de recursos tarifários, como é o caso da Conta de Bandeiras Tarifárias, Conta ACR e CDE.”

    MP 1.304: temas estruturantes e desafios regulatórios: A MP 1.304 absorveu os pontos mais complexos, com prazo até 6 de novembro para análise no Congresso. Entre os principais temas estão:

        • Abertura do mercado livre para consumidores de baixa tensão: consumidores como residências e pequenos comércios poderão escolher seus fornecedores de energia. “Essa abertura representa um avanço regulatório e já deveria ter acontecido há muito tempo”, afirma Vianna. Ana Karina Souza destaca que “a postergação não anula contratos existentes, mas impõe custo de oportunidade a quem planejava migrar.”

        • Revisão dos subsídios: a proposta inclui um novo encargo para quem se beneficia de descontos, como cooperativas e geradores incentivados. “Há ponderações importantes sobre a proposta do novo encargo que envolvem violação ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e também ao princípio da isonomia”, alerta Ana Karina Souza.

        • Mudança na matriz energética: térmicas movidas a gás natural podem ser substituídas por Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), o que exige revisão de contratos e investimentos. “Diretrizes de política e planejamento não geram direito à indenização. O risco jurídico real aparece quando existe ilegalidade ou restrição à competição no âmbito da licitação”, explica.

       

      Conflitos normativos e limites legislativos: A tramitação da MP 1.304 pode gerar conflitos com normas infralegais já emitidas pela ANEEL ou pelo CNPE. “É natural que haja conflitos de curto prazo, porque normas infralegais permanecem até serem revistas. Mas a hierarquia é clara: a MP tem força de lei e prevalece sobre as normas infralegais”, afirma Ana Karina Souza.

      Sobre os limites legais para o Congresso modificar MPs, a especialista lembra: “O Congresso pode emendar e aperfeiçoar, mas não pode desvirtuar o objeto. O art. 62 da Constituição estabelece urgência e relevância como critérios, e a ADI 5.127 reforçou a necessidade de pertinência temática”.

       

      Como o setor está se preparando: Para Vianna, o setor elétrico precisa se adaptar a um novo cenário, especialmente com a possível abertura do mercado para milhões de consumidores. Ele destaca três pilares fundamentais:

          • Pessoas: contratar profissionais com perfil voltado para o varejo, como os que atuam em startups e empresas de telecomunicações.

          • Tecnologia: investir em aplicativos e dispositivos que ajudem o consumidor a entender e controlar seu consumo de energia.

          • Marketing: comunicar de forma clara e acessível, usando redes sociais e campanhas educativas para explicar os benefícios do mercado livre.

        O Grupo Delta Energia, por exemplo, criou a comercializadora LUZ, voltada para o varejo, e já oferece soluções como leitura em tempo real do consumo e simulações de economia com a migração para o mercado livre.

         

        Precedentes e riscos regulatórios: A fragmentação de temas complexos em múltiplas MPs não é proibida, mas aumenta a incerteza. “O exemplo da MP 579/2012 é emblemático: mudanças profundas nas regras de concessões desencadearam anos de judicialização e disputas arbitrais”, lembra Ana Karina Souza. “Quanto maior o fracionamento e a demora na conversão, maior o custo de capital e menor a previsibilidade.”

        O que esperar daqui para frente: A MP 1.304 tem prazo até 6 de novembro para ser analisada pelo Congresso. A expectativa é que ela traga soluções equilibradas para garantir a proteção social sem comprometer a sustentabilidade financeira.


        Análise GZM: entre urgência política e maturidade regulatória

        A divisão entre as MPs 1.300 e 1.304 escancara um dilema recorrente na formulação de políticas públicas no Brasil: como equilibrar a necessidade de respostas rápidas com a profundidade exigida por reformas estruturais. Ao optar por fatiar o conteúdo original da MP 1.300, o governo e o Congresso buscaram viabilizar medidas imediatas — como a ampliação da tarifa social e o rateio de custos nucleares — enquanto empurraram para a MP 1.304 os temas mais sensíveis e complexos, como subsídios, geração distribuída e abertura do mercado livre.

        Essa estratégia pode até ser eficaz no curto prazo, mas cobra um preço alto em termos de previsibilidade e segurança jurídica. A fragmentação legislativa tende a gerar ruído regulatório, dificultando o planejamento de investidores e operadores do setor. Quando temas estruturantes são tratados por medidas provisórias, com prazos apertados e pouca margem para debate técnico, o risco de judicialização e instabilidade aumenta consideravelmente.

        A postergação da abertura do mercado livre para consumidores de baixa tensão, por exemplo, representa não apenas um atraso regulatório, mas também um custo de oportunidade para milhares de consumidores que poderiam se beneficiar de tarifas mais competitivas e liberdade de escolha. A manutenção de subsídios sem uma revisão criteriosa também perpetua distorções tarifárias e penaliza a eficiência.

        Outro ponto crítico é a substituição de térmicas por PCHs nos leilões. Embora alinhada à transição energética, essa mudança exige cuidado para não gerar passivos jurídicos com investidores do setor de gás natural, que podem se sentir prejudicados por alterações abruptas de política pública. A ausência de direito adquirido não elimina o impacto reputacional e a necessidade de previsibilidade nas regras do jogo.

        A transferência da gestão de recursos tarifários do Ministério de Minas e Energia para a ANEEL é um avanço técnico, mas exige reforço institucional para lidar com a complexidade crescente do setor. A agência reguladora precisa de autonomia, recursos e capacidade analítica para exercer esse papel com eficiência e transparência.

        Por fim, o uso recorrente de medidas provisórias para tratar de temas estruturais revela uma fragilidade do processo legislativo. Reformas profundas exigem projetos de lei debatidos com tempo, participação e rigor técnico. A experiência mostra que mudanças feitas às pressas, sem coordenação entre Executivo, Legislativo e reguladores, tendem a gerar conflitos normativos, insegurança jurídica e retração de investimentos.

        O setor elétrico brasileiro está diante de uma encruzilhada. Ou avança com coragem e consistência rumo à modernização, ou continuará refém de soluções paliativas e ciclos de instabilidade. A MP 1.304 será um teste decisivo. Se bem conduzida, pode consolidar avanços e preparar o país para uma nova era energética. Se mal articulada, pode repetir erros do passado e comprometer o futuro.

        A lição é clara: modernizar o setor elétrico exige mais do que medidas provisórias. Exige visão de Estado, diálogo qualificado e compromisso com a construção de um modelo regulatório estável, transparente e voltado para o interesse público.

        Para dar melhor entendimento ao assunto, confira a seguir a íntegra das entrevistas com os especialistas ouvidos para esta reportagem. A seguir está a conversa com Luiz Fernando Leone Vianna, vice-presidente Institucional e Regulatório do Grupo Delta Energia

        Luiz Fernando Leone Vianna, vice-presidente Institucional e Regulatório do Grupo Delta Energia 


        GZM: Como você avalia o recorte feito na MP 1.300 e a transferência de temas estruturais para a MP 1.304?

        Luiz Fernando Leone Vianna: A MP 1.300, como foi aprovada, perdeu boa parte do conteúdo original. Como foi concebida, embora não fosse de fato uma ampla reforma do setor, seria o primeiro passo para essa reestruturação que o país precisa. Com as alterações, passou a ter caráter predominantemente social, o que é importante. No entanto, precisamos ir além disso para seguirmos com o desenvolvimento do setor elétrico brasileiro. 

        Por exemplo, a agenda de modernização, que prevê abertura total do mercado livre de energia, migrou para a MP 1.304. Essa mudança, por um lado, garante que pontos mais complexos tenham tempo de debate, mas reforça a necessidade de celeridade para não comprometermos avanços essenciais.


        GZM: A ampliação da Tarifa Social pode impactar o equilíbrio financeiro do setor? Como garantir sustentabilidade?

        Luiz Fernando Leone Vianna: A MP 1.300 aprovada não trouxe mecanismo de compensação para os custos adicionais da tarifa social: são cerca de R$ 4,5 bilhões para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e impacto tarifário de 1,4% para os demais consumidores do mercado regulado, segundo o Ministério de Minas e Energia.  

        São pontos de atenção a serem observados porque, ao mesmo tempo em que reforça a importância da inclusão social, abre espaço para questionamentos jurídicos, se não for devidamente endereçado. Por essa razão, para garantir a sustentabilidade da proposta é fundamental que outras tramitações sobre o setor elétrico sigam seu ritual no Congresso Nacional para complementar a MP 1.300. 

        Diante deste cenário, a MP 1.304 assume o protagonismo no Congresso Nacional. Os temas absorvidos pela medida têm prazo até 6 de novembro para uma análise profunda dos parlamentares, inclusive alternativas de financiamento da tarifa social. Espera-se que o novo texto traga uma solução que garanta a sustentabilidade do setor sem sobrecarregar ainda mais a CDE e sem riscos de questionamentos jurídicos, que fatalmente ocorreriam, caso a MP 1.300 tivesse sido aprovada com o texto inicialmente proposto com relação a esse tema. Por isso, a aprovação da MP 1.304 é fundamental com um modelo de compensação equilibrado, capaz de conciliar a necessária proteção social com a estabilidade financeira do mercado de energia elétrica. 

        Nesse contexto, seguir com a abertura total do mercado livre de energia é um dos caminhos para essa conquista. Lembro que a proposta é dar acesso à modalidade e liberdade de escolha do fornecedor de energia aos consumidores de baixa tensão, incluindo indústria, comércio e, principalmente, os residenciais. 


        GZM: O rateio dos custos das usinas nucleares entre os consumidores é uma solução justa? Quais os riscos dessa medida?

        Luiz Fernando Leone Vianna: O rateio de custos já estava no radar, portanto não é surpresa para o setor. A Abraceel (Associação Brasileira dos Consumidores de Energia) realizou estudo detalhado sobre o tema e concluiu que o impacto da cobrança adicional tende a ser bastante limitado. Em linhas práticas, significa que os consumidores livres que, até então, não arcavam com esse tipo de rateio, passarão a contribuir, mas de forma que não compromete a dinâmica do mercado. 

        Se trata de um movimento natural, sem riscos à competitividade do Ambiente de Contratação Livre (ACL), desde que haja total transparência na metodologia aplicada. Essa previsibilidade e clareza são cruciais para que todos os agentes continuem operando com segurança e confiança.


        GZM: A flexibilização para irrigantes representa um avanço regulatório? Há riscos de judicialização?

        Luiz Fernando Leone Vianna: A flexibilização representa um avanço na medida em que o consumidor terá um desconto limitado a 8 horas e meia por dia, com escala de horário a ser definida junto à distribuidora. Porém, houve um questionamento da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) que entende que o horário do desconto especial deveria ser feito de comum acordo entre o agricultor e a distribuidora. Neste caso, ainda não é possível afirmar se seria o caso de judicialização, mas é provável que essa discussão retorne na MP 1.304.


        GZM: Como a Delta Energia vê a abertura do mercado livre para consumidores de baixa tensão? Quais os desafios operacionais?

        Luiz Fernando Leone Vianna: O Grupo Delta Energia vem se preparando há tempos para atuar no mercado livre de energia com atendimento à população que está na baixa tensão, ou seja, no mercado do varejo. Foram feitos investimentos em tecnologia, criação da comercializadora varejista LUZ, educação ao consumidor por meio de ativação em marketing de massa, recursos humanos com a contratação de profissionais para além do setor de energia e a construção de fazendas solares para atuar em geração distribuída (GD) compartilhada e, assim conhecermos o consumidor conectado à rede de baixa tensão, sendo uma preparação para a abertura total do mercado. 

        Essa abertura do mercado livre a todos os consumidores de energia elétrica representa um avanço regulatório no Brasil, e já deveria ter acontecido há muito tempo. A Lei nº 9.074, de 1995, previa que em oito anos o mercado poderia ser totalmente aberto, o que não aconteceu. Portanto, o país aguarda essa evolução. Tivemos a oportunidade com a MP 1.300/2025. Como não foi possível, nossa perspectiva é que ocorra, definitivamente, com a tramitação da MP 1.304. Hoje, 46% de toda a energia consumida no país está no mercado livre. 

        É um volume significativo, porém, em termos de consumidores, são apenas cerca 80 mil. Não é justo limitar esse acesso, considerando que temos aproximadamente 90 milhões de unidades de consumidoras no país. É inaceitável que a maioria da população deixe de se beneficiar com custo de energia elétrica até 30% menor, além da possibilidade de contar com soluções personalizadas, ajustadas às necessidades de cada um. Um dos desafios é transpor barreiras e interesses particulares para avançarmos com a modernização do setor elétrico e, assim, atender a coletividade em nosso país. 


        GZM: A MP 1.304 pode trazer mudanças significativas nos subsídios. Quais os impactos esperados para comercializadoras e geradores?

        Luiz Fernando Leone Vianna: Quando falamos de tarifa social, tratamos de um custo que, segundo dados do Ministério de Minas e Energia, é de cerca R$ 4,5 bilhões. A reflexão a ser feita é quem vai pagar essa conta de maneira que o valor não seja direcionado para a CDE (Conta de Desenvolvimento Energético) e não onere os demais consumidores. 

        O texto original da MP 1.300 trazia uma solução, porém preocupante para esse reequilíbrio. Pela medida, teríamos o fim do desconto do fio. Esperamos que a MP 1.304 traga outra solução para esse reequilíbrio, até porque o desconto do fio é uma solução, ou seja, um caminho que fatalmente seria questionado judicialmente.


        GZM: Há espaço para inovação regulatória no modelo atual? O Brasil está pronto para uma transição mais acelerada?

        Luiz Fernando Leone Vianna: Se considerarmos o texto da MP 1.300 aprovada, não vemos muito espaço. Agora, se a MP 1.304 carregar toda a estrutura, ou boa parte dela, que estava no texto original, temos como seguir em uma trajetória de desenvolvimento do setor elétrico brasileiro. Em termos de autoprodução, comercialização de energia, entre outros itens, devemos ter aí um grande avanço para o país.


        GZM: Como o setor deve se preparar para a nova configuração do mercado elétrico até 2027?

        Luiz Fernando Leone Vianna: Nesse momento de transição, temos de pensar sempre no famoso “tripé”, composto por pessoas, tecnologia e marketing, que dá sustentação para a abertura do mercado de eletricidade da baixa tensão. Em recursos humanos, é necessário buscar profissionais com um perfil para o varejo. Na LUZ, a comercializadora varejista do Grupo Delta Energia, já temos uma equipe que segue essa diretriz. São profissionais, com experiência no mercado de startup, empresas telefônicas, que estão acostumados a lidar com a dinâmica do varejo e vêm para somar com nossa equipe do mercado de energia. 

        A outra perna do tripé é a tecnologia. Na LUZ, dando mais um exemplo de casa, temos um aplicativo por meio do qual o consumidor fotografa a conta de energia e, automaticamente, oferece opções para migrar para o mercado livre, apresentando quanto seria o desconto, quais os contratos para um, dois, ou três anos. A necessidade de tecnologia, tanto em software como em hardware, é bastante importante também. 

        Para os clientes da LUZ, colocamos um aparelho na caixa de distribuição de energia, para fornecer a leitura de quanto aquela unidade está consumindo. Hoje, você só vai saber quanto foi o consumo da conta no final do mês. Com esse equipamento, a qualquer momento, você tem como acompanhar, e tudo pelo celular. Esse mesmo aparelho ajuda a indicar quais são os “vilões da sua conta de energia”, se é o ferro de passar roupa ou se a sua geladeira que está com algum problema.

        O terceiro pilar é o marketing. Migrar para o mercado varejista significa passar a lidar com milhões de clientes, uma maneira muito diferente do que estamos acostumados com os consumidores de média e alta tensão, que têm conta de energia acima de R$ 10 mil. Esse novo cenário deve transformar as estratégias de comunicação no setor de energia elétrica, migrando para redes sociais e parcerias estratégicas, saindo da zona de conforto. Em suma, o mercado precisa trazer inovação para atender este novo perfil de consumidor e proporcionar uma experiência diferenciada para esses potenciais clientes. 

        Sobre a abordagem jurídica, confira a seguir as entrevistas com Ana Karina Souza, sócia de Infraestrutura e Energia do escritório Machado Meyer, e Daniela Afonso, advogada sócia especializada do escritório Siqueira Castro:


        GZM: Quais são os riscos jurídicos da retirada de trechos estruturantes da MP 1.300 e sua transferência para outra MP?

        Ana Karina Souza: Fragmentar a agenda entre duas medidas provisórias resultou de uma solução e alinhamento político no âmbito do Congresso Nacional. Essa solução foi guiada, em prática, pela intenção de permitir maior tempo para o debate de algumas das disposições que então constavam da MP 1.300.

        Daniela Afonso: A retirada de trechos estruturantes da MP 1300 e sua migração para a MP 1304, a meu ver, abre espaço para mais insegurança jurídica no setor. 

        Apenas para citar um aspecto, sem entrar no mérito dos temas trazidos originalmente pela MP 1300, existe um questionamento quanto ao uso em si da medida provisória como instrumento para tratar de temas estruturais ao setor e que impactam tão profundamente toda a sociedade, sem um debate prévio amplo com os diversos setores interessados. O requisito de urgência da medida provisória, previsto no art. 62 da Constituição Federal precisa ser observado.

        A MP1300 entrou no Congresso com um texto, e saiu muito reduzida, com temas relevantes (como o desconto nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão/distribuição (TUST/TUSD) para o consumidor, requisitos para a autoprodução, e abertura de mercado) teoricamente transportados para a MP 1304. 

        Então, por um lado, foram retirados da MP 1300 temas cuja urgência era questionável, levando-se essas temas para uma outra MP, e não para um projeto de lei, onde se teria mais espaço e tempo para uma discussão aprofundada. Com isso, a discussão de temas relevantes, que tratam de políticas públicas e planejamento do setor, pode não ser feita novamente por falta de prazo, ou ser feita de forma atropelada. O risco é aumentar a insegurança jurídica e afugentar investimentos.

        Daniela Afonso, advogada sócia do escritório Siqueira Castro

         

        GZM: A exclusão de dispositivos sobre geração distribuída pode ser interpretada como tentativa de evitar judicialização?

        Ana Karina Souza: A Lei nº 14.300/2022 consolidou regras de transição até 2045. Alterações abruptas nesse regramento poderiam ensejar alegações de violação ao ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, CF) e pedidos de tutela de urgência. Ao retirar a GD da MP 1.300, o legislador optou por adiar um debate difícil, mitigando litígios imediatos, transferindo essas discussões para a MP 1.304, que deverão ser ainda acompanhadas de perto.


        GZM: A mudança de competência do MME para a ANEEL na gestão de recursos tarifários fere algum princípio constitucional ou legal?

        Ana Karina Souza: O art. 174 da CF autoriza a atuação regulatória do Estado, e a Lei nº 9.427/1996 criou a ANEEL justamente para exercer esse papel. A ANEEL inclusive já possui atuação na gestão de recursos tarifários, como é o caso das Conta de Bandeiras Tarifárias, Conta ACR e CDE. 


        GZM: Como a postergação da abertura do mercado livre de energia para baixa tensão afeta contratos já firmados ou planejados?

        Ana Karina Souza: A postergação não anula contratos existentes com consumidores já elegíveis, mas atrasa a abertura do mercado livre e impõe custo de oportunidade a quem planejava migrar. A base legal da abertura progressiva remete à Lei nº 9.074/1995; contudo, consumidores de baixa tensão não detêm ainda direito adquirido à migração.

        Daniela Afonso: A postergação da abertura do mercado para baixa tensão não invalida contratos que tenham sido firmados na vigência da MP 1300, com a expectativa de abertura antecipada do mercado. Mas pode obrigar consumidores e comercializadores a renegociarem esses contratos, a depender do que tenha sido estabelecido originalmente quanto ao início de sua vigência. Isso pode impactar o planejamento de comercializadores e consumidores.


        GZM: A criação de um novo encargo para beneficiários de subsídios na MP 1.304 pode ser considerada bitributação ou violação ao princípio da isonomia?

        Ana Karina Souza: Há ponderações importantes sobre a proposta do novo encargo que envolvem violação ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e também ao princípio da isonomia, como você pontuou. O tema não é simples, e merecerá acompanhamento próximo das discussões que ocorrerão no Congresso Nacional nas próximas semanas.


        GZM: A substituição de térmicas por PCHs nos leilões pode gerar passivos jurídicos com investidores do setor de gás natural?

        Ana Karina Souza: Diretrizes de política e planejamento não geram direito à indenização. Investidores que apenas projetaram negócios com base em expectativas não têm automaticamente direito subjetivo de indenização. O risco jurídico real aparece quando existe ilegalidade ou restrição à competição no âmbito da licitação, o que deve ser analisado caso a caso.

        Daniela Afonso: A substituição de térmicas por PCHs pode gerar contestações de investidores em gás natural com base em mudanças abruptas de política pública. Contudo, não há direito adquirido a novos leilões, o que limita pleitos indenizatórios.


        GZM: Há risco de conflito entre a MP 1.304 e normas infralegais já emitidas pela ANEEL ou pelo CNPE?

        Ana Karina Souza: É natural que haja conflitos de curto prazo, porque normas infralegais permanecem até serem revistas. Mas a hierarquia é clara: a MP tem força de lei e, por consequência, prevalece sobre as normas infralegais. Durante esse processo de adequação, agentes enfrentarão incerteza sobre requisitos técnicos e condições comerciais. Esse custo de transição poderia ser mitigado com maior coordenação prévia entre Executivo, Legislativo e regulador.

        Daniela Afonso: A MP 1304, ao mexer em subsídios, encargos e diretrizes de planejamento, pode colidir com normas infralegais já em vigor, mas isso tende a ser resolvido não via judicialização imediata, e sim via processo regulatório de ajuste pela ANEEL/CNPE.


        GZM: Quais são os limites legais para o Congresso modificar MPs originalmente propostas pelo Executivo?

        Ana Karina Souza: O Congresso pode emendar e aperfeiçoar, mas não pode desvirtuar o objeto. O art. 62 da CF estabelece urgência e relevância como critérios, e a ADI 5.127 reforçou a necessidade de pertinência temática. Quando esse limite é ultrapassado, há risco de controle judicial. Alterações profundas deveriam ser feitas por projeto de lei ordinária, para reduzir insegurança e litígios futuros.

        Daniela Afonso: O Congresso pode alterar MPs, mas não pode desvirtuar sua finalidade, criando normas estranhas ao objeto inicial (contrabando legislativo). O STF já reconheceu limites para emendas sem pertinência temática. Mas no caso, em questão, ambas as MPs tratam de normas do setor elétrico.


        GZM: A prorrogação de subsídios via MP pode ser questionada por órgãos de controle como o TCU ou o Ministério Público?

        Ana Karina Souza: Em tese, apenas se a MP contemplar alguma disposição que violar a Constituição Federal (como por exemplo, princípios constitucionais da eficiência, isonomia, moralidade administrativa etc (art. 37, CF).


        GZM: Quais precedentes jurídicos existem sobre a fragmentação de temas complexos em múltiplas MPs e seus efeitos sobre a segurança regulatória?

        Ana Karina Souza: Não há precedente específico que proíba a fragmentação, mas a experiência demonstra que dividir matérias complexas aumenta a incerteza. O STF, na ADI 5.127, delimitou o conteúdo admissível em MPs, mas não tratou da fragmentação em si. O exemplo da MP 579/2012 é emblemático: mudanças profundas nas regras de concessões desencadearam anos de judicialização e disputas arbitrais. Quanto maior o fracionamento e a demora na conversão, maior o custo de capital e menor a previsibilidade. Esse é o principal risco para a segurança regulatória hoje.

        Ana Karina Souza, sócia de Infraestrutura e Energia do escritório Machado Meyer

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