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Quando o esgoto vira solução

Por Augusto Hauber Gameiro, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP

urante o meu pós-doutorado na Universidade de Paris, estudei as cinco principais cadeias de produção animal do Brasil: da bovinocultura de corte e leite, da suinocultura e da avicultura de corte e postura. Ao seguir o caminho dos nutrientes — do solo aos insumos agrícolas, dos grãos à ração, dos animais ao consumo humano —, percebi algo de que pouco se fala: quanto mais a produção animal cresce, mais dejetos ela gera. Nitrogênio, fósforo e potássio — os mesmos elementos que fertilizam nossas lavouras — retornam ao ambiente em volumes cada vez maiores, muitas vezes sem reaproveitamento e com significativo potencial de impacto ambiental.

O estudo mostrou que, entre 1992 e 2013, o Brasil mais que dobrou a quantidade desses nutrientes circulando no sistema agroindustrial. Entretanto, grande parte desse fluxo termina em desperdício. Isso tudo foi quantificado matematicamente e está disponível no artigo. O fósforo e o potássio, minerais não renováveis e importados em larga escala, acabam perdidos em dejetos animais e humanos, ao percorrerem todas as cadeias, do início ao fim. A lógica da economia circular — produzir, consumir e devolver à natureza de forma sustentável — só se completa quando o último elo, o próprio ser humano, passa a participar conscientemente desse ciclo, o que não ocorre na realidade.

O problema invisível: desperdício em escala planetária

A sociedade moderna se habituou a pensar o esgoto como algo a ser descartado, nunca como um recurso. No entanto, cada pessoa elimina por dia nutrientes suficientes para fertilizar uma parcela de solo agrícola. Somadas as populações urbanas, essas quantidades equivalem a milhares de toneladas de nitrogênio, fósforo e potássio que poderiam retornar à agricultura, fora os vários outros elementos químicos e compostos orgânicos presentes nos dejetos e resíduos.

Hoje, esse ciclo é interrompido por um modelo linear: extraímos minerais do subsolo, transformamos em fertilizantes, produzimos alimentos, consumimos e… despejamos os resíduos no esgoto. Esse sistema não apenas gera poluição, como agrava a dependência de importações de insumos estratégicos — especialmente o fósforo, cuja escassez mundial já preocupa a FAO e que já tratamos em outro artigo aqui no Jornal de USP.

O Brasil, que se tornou potência agroexportadora, é simultaneamente um dos países que mais importam fertilizantes. Produzimos carne, soja, milho, cana, café etc. em volumes recordes, mas dependemos de recursos minerais que se esgotam e que estão com os anos contados caso não venham a ser reciclados. Ao final do processo, os dejetos humanos, ricos nesses mesmos nutrientes, são simplesmente descartados: um desperdício somado ao dano ambiental.

Do problema à solução: transformar o esgoto em recurso

Reciclar dejetos humanos não é utopia tecnológica, mas uma fronteira concreta da sustentabilidade. Diversos países já avançam em soluções que convertem esgoto em energia, fertilizante e água de reúso. O princípio é simples: o que chamamos de resíduo é, na verdade, matéria-prima mal aproveitada. É energia no lugar e momento errados.

Sistemas de biodigestão, por exemplo, permitem transformar fezes e urina em biogás — fonte de energia limpa — e em biofertilizantes de alta qualidade, ricos em nutrientes que retornam ao solo. O uso seguro desses produtos, após tratamento adequado, já é regulamentado em vários países europeus e asiáticos.

No Brasil, experiências isoladas mostram o potencial: usinas de biogás em propriedades rurais, estações de tratamento que geram energia e projetos de agricultura regenerativa que utilizam compostagem sanitária controlada. O desafio é integrar essas iniciativas em políticas públicas de saneamento e agricultura, reconhecendo que o esgoto pode — e deve — ser parte da solução climática e alimentar.

O desafio cultural: o nojo como barreira ecológica

Mais difícil que o desafio técnico é o simbólico. O ser humano rejeita o que excreta. Há milênios associamos os dejetos à impureza e ao perigo. Essa repulsa foi essencial para o avanço da saúde pública, mas hoje precisa ser ressignificada à luz da sustentabilidade.

Não se trata de romantizar o esgoto, mas de compreender que ele encerra o mesmo ciclo bioquímico que sustenta a vida. O fósforo que está em nossos ossos veio das rochas e dos alimentos, e poderia retornar ao solo para nutrir novas plantas. O que falta é consciência ecológica — uma ética circular que veja na reciclagem de dejetos humanos não uma transgressão, mas um gesto de responsabilidade com as futuras gerações.

Os resultados do meu estudo deixaram uma mensagem clara: a eficiência crescente da produção animal pouco contribuirá para o meio ambiente se não integrarmos toda a cadeia — incluindo o ser humano — à economia circular. A sustentabilidade exige que nada se perca: nem o alimento, nem o resíduo, nem a energia.

Enquanto tratarmos o esgoto apenas como problema, desperdiçaremos a oportunidade de transformá-lo em solução. O desafio agora é político, tecnológico e cultural: fechar o ciclo da vida, devolver à Terra o que dela recebemos e entender que a verdadeira limpeza não está em descartar, mas em reaproveitar.

  • Em colaboração com Jornal da USP

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