Carregando...

Sérgio Amadeu escancara o papel das big techs na guerra contemporânea

Autor busca mostrar que a incorporação da IA aos interesses militares dos Estados Unidos está redefinindo o poder bélico, subordinando-o a interesses corporativos e criando um sistema de vigilância total e violência automatizada

Lançado recentemente, o livro As big techs e a guerra total, do sociólogo e cientista político Sérgio Amadeu da Silveira, é uma obra provocadora que mergulha nas implicações geopolíticas do avanço da inteligência artificial e da crescente influência das gigantes da tecnologia no cenário militar global. Com uma abordagem crítica e fundamentada em ampla pesquisa, Amadeu revela como empresas como Google, Amazon, Microsoft, Oracle e Palantir deixaram de ser apenas fornecedoras de infraestrutura digital para se tornarem peças-chave na gestão da guerra contemporânea.

A obra parte de uma questão urgente: como o desenvolvimento tecnológico molda não apenas nosso cotidiano, mas também os conflitos armados e as disputas entre potências. O autor mostra que a incorporação da IA aos interesses militares dos Estados Unidos está redefinindo o poder bélico, subordinando-o a interesses corporativos e criando um sistema de vigilância total e violência automatizada.

Com linguagem acessível e exemplos contundentes — como o uso de sistemas de IA por Israel na Faixa de Gaza — Amadeu denuncia a “dataficação” como instrumento de dominação e alerta para os riscos da fusão entre capitalismo de vigilância e militarismo digital. O livro também discute como as big techs, longe de serem neutras, atuam como mediadoras de relações sociais e políticas, influenciando decisões antes restritas ao comando político e militar.

O lançamento reforça o papel do autor como uma das vozes mais relevantes no debate sobre tecnologia, democracia e poder. Professor da UFABC e autor de diversas obras sobre redes digitais, privacidade e ativismo, Amadeu convida o leitor a refletir sobre os limites éticos da automação bélica e a urgência de um debate público sobre o tema.

A GZM conversou com Sérgio Amadeu da Silveira para saber mais detalhes sobre a obra, confira:

GZM: O que motivou a escolha do tema da guerra como eixo central para discutir o avanço da inteligência artificial?

Sérgio Amadeu da Silveira: Eu pesquiso há mais de cinco anos as implicações sociais e econômicas da IA. Estava fazendo um levantamento dos data centers e me deparei com um texto assinado por uma diretora de defesa da Amazon Web Server. Foi aí que descobri que as Big Techs tinham divisões para realizar vendas e obter lucros dos negócios da guerra. 

Em seguida, descobri uma mobilização dos trabalhadores dessas empresas contrários ao emprego dos sistemas de aprendizado e máquina e das estruturas de armazenamento de dados para objetivos militares. O livro que escrevi traz um breve relato sobre o movimento contra o uso militar da IA e de dados organizado por cientistas da computação, da ciência de dados e programadores, entre outros trabalhadores dessas corporações, que começou em 2017.

GZM: Como o senhor define o conceito de “dataficação” e por que ele é tão perigoso no contexto militar?

Sérgio Amadeu da Silveira: A dataficação é o processo de conversão de todas as atividades humanas em uma torrente de dados, ou seja, expressas em dados. A IA realmente existente exige gigantescas bases de dados. As Big Techs e suas plataformas coletam dados da população do mundo todo para criar um perfil de consumo e comportamento de cada pessoa. Isso começou a ser feito com objetivos comerciais e publicitários. 

Não é por menos que o grupo Meta e Alphabet se tornaram os maiores destinos de verbas publicitárias do planeta. Ocorre que esse processo de captar o nosso comportamento e convertê-lo em dados passou a ser útil para a fixação de alvos da inteligência e das forças armadas. O antigo complexo militar industrial passou a se basear em dados. A guerra contemporânea utiliza dados obtidos por drones,satélites, helicópteros e tropas em infraestruturas de data centers. Esse processamento é feito com as Big Techs. 

GZM: Quais são os principais exemplos de uso de IA em conflitos armados que o livro aborda?

Sérgio Amadeu da Silveira: O maior exemplo que relato no livro foi o uso da IA, especificamente do aprendizado de máquina profundo, para a fixação de alvos na Faixa de Gaza. Antes de iniciar a guerra em 2023, as forças armadas de Israel tinham coletado dados da população palestina, principalmente de redes sociais. Treinaram modelos algoritmos para classificar a população e detectar quem seria militante e simpatizante do Hamas. Cruzaram dados de redes sociais, de escutas de celulares, de câmeras de vigilância em drones e em veículos. 

Com isso, foram mapeando a população e quando a guerra começou atingiram pessoas fora das áreas de combate, matando os alvos e todos os demais que estavam ao seu lado. Em um dos capítulos, relato a doutrina da Deep War, com trechos do livro do General de Brigada Yossi Sariel que propõem fixar alvos com base em informações coletadas de redes digitais para serem abatidos como ato inicial da guerra. O jornal The Guardian e o 972 Magazine de Israel denunciaram esse procedimento. Recentemente, o vice-presidente da Microsoft, Brad Smith, anunciou que rompeu o contrato de uso do data center da Azure porque confirmaram as ações de vigilância da população Palestina reportadas pelo The Guardian. 

GZM: De que forma as big techs passaram a ocupar um papel estratégico na gestão da guerra contemporânea?

Sérgio Amadeu da Silveira: Existe uma indústria da guerra que atua fornecendo armas e dispositivos para as forças armadas. O presidente Eisenhower, em 1961, nomeou essa relação de complexo militar-industrial. No século XX, os militares definiram os projetos de armas e a indústria construiu esses apetrechos. 

Com a dataficação, ou seja, com a conversão de todas expressões das atividades humanas em dados, com o uso de IA nas ações táticas das guerras e na vigilância massiva das redes, o Pentágono definiu que não era possível replicar as estruturas de armazenamento e processamento de dados no interior das forças armadas. A perspectiva neoliberal colaborou para essa visão. Assim, as Big Techs foram trazidas para o epicentro das operações militares. Por isso, desenvolvem produtos  e serviços específicos, pelo mesmo motivo essas empresas criaram departamentos de defesa. 

GZM: O livro menciona que essas empresas podem estar corroendo as democracias. Como isso acontece na prática?

Sérgio Amadeu da Silveira: Primeiro, nunca existiu uma corporação que possuísse dados de mais de 3 bilhões da população do planeta, de pessoas de praticamente todos os países. Essas pessoas tiveram seu comportamento, suas atividades online mapeadas e convertidas em padrões. O grupo Meta, Alphabet, Amazon e a Microsoft se esforçam para obter cada vez mais dados das pessoas.

As Big techs mediam as interações sociais e disputam nossa atenção. Na realidade, elas modulam nossa atenção em busca de lucros com a venda do acesso aos nossos perfis para empresas, agências de publicidade e políticos. Elas monetizam cada momento da vida. Os debates políticos passam pelas suas redes privadas que elas apresentam como se fossem espaços públicos online. Mas, não são. A democracia e os processos democráticos estão sendo tragados e desvirtuados pelas Big techs. Agora, os dados que utilizamos para nos atingir com publicidade estarão disponíveis para a fixação de alvos de interesse militar. Além disso, os CEOs e as direções das Big Techs se aliaram com a extrema direita que, como falou claramente Peter Thiel, CEO da Palantir, não considera que a “liberdade” possa conviver mais com a “democracia”.

GZM: Há alguma forma de regulação internacional que possa conter o avanço da militarização digital promovida pelas big techs?

Sérgio Amadeu da Silveira: Sim. É preciso avançarmos para construirmos tratados internacionais de uso de dados das populações civis e de limitações no uso de IA para finalidades militares e de espionagem. Assim como existem tratados internacionais sobre crimes de guerra, sobre o banimento de armas químicas, é preciso avançarmos no controle dos negócios digitais da guerra. Obviamente não somos ingênuos, a questão dos dados e da IA é mais complexa que a questão nuclear. A construção e uso de armas nucleares dependem de uma megamáquina tal como o armazenamento, processamento de dados para o treinamento e uso de IA.

É preciso sensibilizar a opinião pública internacional. O risco não é a IA autônoma tomar as rédeas da humanidade, o risco são a cúpula das Big Techs criarem uma oligarquia tecno militar autoritária. Aliás, quando os trumpistas como Peter Thiel e Curtis Yarvin defendem o neocameralismo, eles querem que os Estados Unidos tenham um Estado como se fosse uma empresa, quem tem mais dinheiro manda e ele deve ser dirigido por um CEO. Trata-se de um neofascismo, não mais corporativo, totalmente neoliberal.

GZM: Como o senhor avalia a responsabilidade ética dos engenheiros e desenvolvedores que trabalham nesses sistemas?

Sérgio Amadeu da Silveira: Acho a responsabilidade ética indispensável. A tecnologia não deve ser utilizada para a vigilância totalitária das sociedades, muito menos para expandir o racismo e o preconceito algorítmico, muito menos para mapear e exterminar pessoas. Muitos engenheiros,  cientistas e programadores do Google em 2018 lançaram o Manifesto contra o uso da IA para fins militares. 

Em 2021, engenheiras e engenheiros da Amazon, Google, Microsoft lançaram o manifesto No Tech For Apartheid, contra o uso de sistemas automatizados para a vigilância e extremínio de palestinos promovido pelo Estado de Israel. Temos diversos exemplos que a resistência parte dos trabalhadores e cientistas que são chamados para projetarem tecnologias contrárias à liberdade e à justiça. Mas, só a ética não basta. A ética é individual. Precisamos de regulação. 

GZM: O envolvimento das big techs com as Forças Armadas é transparente para o público? Quais são os riscos dessa opacidade?

Sérgio Amadeu da Silveira: O público não tem as informações fundamentais dessa relação, até porque depois de um certo nível, tudo passa a ser considerado secreto e exclusivamente de uso militar. São as razões de Estado e o sigilo da guerra. Ocorre que em uma rede social, boa parte das pessoas também não sabem que estão sendo gerenciadas por sistemas algorítmicos invisíveis. 

A sociedade não sabe quando o grupo Meta decide bloquear ou reduzir a visualização de conteúdos e postagens de um determinado tema ou assunto. A opacidade é a garantia de bons negócios, civis e militares, para as Big Techs.

GZM: Que tipo de reação o senhor espera provocar nos leitores ao apresentar essas conexões entre tecnologia e guerra?

Sérgio Amadeu da Silveira: Espero que as pessoas obtenham as informações corretas sobre nosso cotidiano e que optem pela recusa a militarização crescente e a escalada da violência, pois a guerra é um negócio devastador, ambientalmente desastroso. 

Acho que devemos conhecer as dinâmicas desses novos Leviatãs, as atuais Big Techs, para evitarmos que elas imponham a concepção de guerra total que é a mesma perspectiva da monetização absoluta de todas as relações sociais.

GZM: Na sua visão, qual seria o papel da sociedade civil e da academia para enfrentar os desafios colocados por essa nova configuração do poder militar?

Sérgio Amadeu da Silveira: A academia deve ampliar suas pesquisas sobre as engrenagens desse aparato, em especial, do complexo militar-industrial-dataficado. O papel da ciência é descobrir e expor com rigor essas descobertas, mas deve também buscar soluções, em conjunto com a sociedade civil, com os sindicatos e com as lideranças populares quais os caminhos para ampliarmos a democracia social, a diversidade, a justiça socioambiental e a paz.

Sérgio Amadeu da Silveira, autor de As big techs e a guerra total: “É preciso sensibilizar a opinião pública internacional. O risco não é a IA autônoma tomar as rédeas da humanidade, o risco são a cúpula das Big Techs criarem uam oligarquia tecno militar autoritária“.

Compartilhe nas redes:

Boletim por E-mail

GZM NEWS

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos e promoções.

publicidade

Recentes da GZM

Mais sessões