A cena é cada vez mais comum nas grandes cidades: motoristas e entregadores conectados a aplicativos, circulando em ritmo frenético, guiados por algoritmos que definem rotas, horários e até avaliações. Por trás dessa aparente liberdade, cresce um debate profundo e urgente: qual é a natureza da relação entre esses trabalhadores e as plataformas digitais? O Supremo Tribunal Federal (STF) está prestes a dar uma resposta que pode redefinir o futuro do trabalho no Brasil.
Em outubro de 2025, o STF concluiu as sustentações orais de duas ações que discutem se há vínculo empregatício entre motoristas e entregadores e empresas como Uber e Rappi. O julgamento, que ainda aguarda votação do mérito, tem repercussão geral e poderá estabelecer um marco regulatório para o trabalho mediado por tecnologia.
Segundo a advogada Claudia Securato, especialista em direito do trabalho, “o direito trabalhista ainda não foi desenhado para esse tipo de relação. A CLT parte da ideia de subordinação humana, e não algorítmica. Então, na prática, estamos começando a ver decisões a respeito desse assunto, e o Judiciário está enfrentando o desafio de enquadrar um modelo novo com regras antigas.”
Decisões internacionais sobre vínculo trabalhista em plataformas digitais
Países como Reino Unido, Espanha e Estados Unidos já enfrentaram judicialmente o mesmo dilema, com decisões que variam do reconhecimento pleno de vínculo empregatício à criação de categorias intermediárias. Veja alguns exemplos:
- Reino Unido: A Suprema Corte decidiu que motoristas da Uber são “workers”, uma categoria intermediária que garante salário mínimo, férias e previdência, mas não todos os direitos de um empregado tradicional.
- Espanha: Aprovou a Lei Rider, que obriga plataformas a registrarem entregadores como empregados com todos os direitos trabalhistas.
- Estados Unidos: Na Califórnia, a Proposição 22 criou uma categoria híbrida de trabalhador independente com benefícios limitados, após disputa judicial sobre a Lei AB5.
- França: Tribunais reconheceram vínculo empregatício em casos específicos, mas o país ainda adota um modelo híbrido.
- Alemanha: Enfatiza a autonomia contratual, com decisões mais favoráveis às plataformas, embora sob crescente pressão regulatória.
- União Europeia: Em processo de aprovação de uma diretiva que presume vínculo empregatício quando há controle algorítmico sobre o trabalhador.
| País/Região | Reconhecimento de vínculo | Modelo adotado |
| Reino Unido | Sim (categoria “worker”) | Intermediário entre empregado e autônomo |
| Espanha | Sim (Lei Rider) | Empregado com direitos plenos |
| Estados Unidos | Parcial e contestado | Trabalhador independente com benefícios |
| França | Casos específicos | Híbrido/autonomia contratual |
| Alemanha | Não reconhecido amplamente | Autonomia contratual |
| União Europeia | Em construção | Presunção de vínculo com critérios objetivos |
Claudia Securato observa que “a decisão da Suprema Corte Britânica reconheceu motoristas como ‘workers’, com direitos mínimos, mas não como ‘full employees’. Já a Lei Rider da Espanha estabeleceu a presunção do vínculo empregatício para entregadores. No Brasil, o STF não cria leis, mas pode sinalizar a lacuna legislativa e estimular o Congresso a agir”.
Subordinação algorítmica e o impasse jurídico
Um dos principais desafios jurídicos é provar a subordinação. “As plataformas dizem que os motoristas têm liberdade, mas na verdade existe o que chamamos de ‘subordinação algorítmica’: o algoritmo define preço, rota, e até a chance de continuar ativo. É um misto de autonomia vigiada e de subordinação às regras da plataforma”, explica Securato.
Essa nova forma de controle desafia os parâmetros tradicionais da CLT, que pressupõem supervisão humana direta. O Judiciário brasileiro ainda tende a não reconhecer o vínculo de emprego, mas o debate está em evolução.
Uma nova categoria de trabalhador?
A criação de uma categoria intermediária entre autônomo e celetista é uma possibilidade. “Tudo vai depender da vontade política de criar um marco legal específico. É imprescindível que esses trabalhadores sejam protegidos, e se essa proteção vier sob a forma de uma nova categoria, ela deve ser regulamentada com cuidado, equilibrando flexibilidade com segurança previdenciária e jurídica”, afirma Securato.
Essa proposta rejeita o binômio tradicional “celetista x autônomo” e abre espaço para um modelo adaptado à realidade digital, com direitos mínimos e contribuições obrigatórias.
Impactos previdenciários e planejamento de longo prazo
Além da relação contratual, há impactos profundos na previdência social. Muitos desses trabalhadores não contribuem regularmente para o INSS, o que pode gerar um contingente crescente de pessoas sem cobertura previdenciária no futuro.
Securato alerta: “Sem contribuição regular e sem benefícios, o trabalhador fica à mercê do presente. É um modelo que funciona enquanto o corpo aguenta. Falta previsibilidade, e falta proteção previdenciária, e isso muda o jeito de planejar a vida”.
Ela defende que haja uma campanha de educação financeira voltada a esses profissionais, para que possam se planejar em todas as etapas da vida.
Geração flexível, carreira instável
Jovens que ingressam no mercado de trabalho por meio de aplicativos muitas vezes não têm acesso à formação sindical, nem à cultura de direitos trabalhistas. Para eles, a flexibilidade pode parecer vantajosa, mas a ausência de garantias pode se tornar um problema à medida que envelhecem ou enfrentam crises.
“Muita gente vê nos aplicativos um atalho para independência financeira e renda imediata. Outros como um complemento necessário. Há quem veja essa informalidade como uma libertação do trabalho tradicional com hora marcada”, comenta Securato.
Ela destaca que a autonomia é uma oportunidade, mas também um risco: “O trabalhador acredita que vira o próprio patrão, mas nem sempre se atenta em garantir sua própria rede de proteção”.
O papel do Estado e das empresas
Segundo dados do IBGE, em 2024 o Brasil tinha 1,7 milhão de pessoas que trabalhavam por meio de plataformas digitais. Uma pesquisa do Datafolha para Uber e iFood mostra que três em cada quatro preferem manter o modelo atual, sem vínculo formal.
Securato conclui: “O papel do Estado deveria ser criar um marco legal que garanta o básico de proteção e garantias, sem engessar a relação. Transformar isso em emprego formal desconfigura o modelo, o que pode deixar de ser viável tanto para trabalhadores quanto para as empresas”.
Ela defende que empresas e governo colaborem: “Flexibilidade não é sinônimo de desproteção. Cabe às empresas arcar com responsabilidades sobre esses trabalhadores e sobre a sociedade que é impactada com seus negócios”.
Um convite à reinvenção
O julgamento no STF é, portanto, mais do que uma disputa jurídica: é um convite à sociedade para repensar o trabalho. Precisamos de um debate aberto, profundo e plural, que envolva juristas, economistas, sociólogos, trabalhadores e empresas. O desafio é encontrar um equilíbrio entre inovação e proteção social, entre liberdade e segurança jurídica.
Se o Brasil quiser acompanhar a revolução digital sem deixar ninguém para trás, terá que reinventar suas normas, seus modelos de negócio e sua visão sobre o que significa trabalhar no século XXI.
A GZM conversou com a advogada Cláudia Securato também sobre o impacto que os novos modelos legais de trabalho vem registrando nos movimentos de carreiras. Confira:
GZM: Como o trabalho por aplicativos tem influenciado as escolhas profissionais das novas gerações?
Cláudia Securato: Muita gente vê nos aplicativos um atalho pra independência financeira e renda imediata. Outros como um complemento necessário, quando as formas tradicionais de trabalho são insuficientes. Há quem veja essa informalidade, a possibilidade de trabalhar de qualquer lugar e em qualquer horário como um benefício garantido, uma libertação do trabalho tradicional com hora marcada.
GZM: Quais são os riscos e oportunidades de construir uma carreira baseada em plataformas digitais?
Cláudia Securato: A oportunidade é a autonomia, o risco é a instabilidade, que na verdade são dois lados da mesma moeda. O trabalhador acredita que vira o próprio patrão, controla horário, local, quanto quer trabalhar num dia, e acredita que pode equilibrar isso com outras obrigações familiares, por exemplo.
Contudo, nem sempre se atenta em garantir sua própria rede de proteção, ou seja, de onde vai vir a renda dela no dia em que não conseguir trabalhar, ou caso tenha algum acidente de trabalho, ou mesmo na hora de se aposentar.
GZM: A ausência de vínculos formais pode comprometer o planejamento de longo prazo, como aposentadoria e estabilidade financeira?
Cláudia Securato: Totalmente. Sem contribuição regular e sem benefícios, o trabalhador fica à mercê do presente. É um modelo que funciona enquanto o corpo aguenta. Falta previsibilidade, e falta proteção previdenciária, e isso muda o jeito de planejar a vida.
Como essa forma de trabalho ainda é muito precarizada, o ideal seria que paralelamente a essa discussão sobre vínculo ou não, houvesse uma orientação massiva sobre educação financeira, para esses trabalhadores, para que se planejem em todas as etapas da vida.
GZM: Que tipo de formação ou orientação os profissionais que atuam em apps deveriam buscar para se proteger e crescer?
Cláudia Securato: Trabalhar por conta não significa trabalhar sem estratégia. Educação financeira é crucial, em especial para planejamento do futuro. No Brasil Mais de 39 milhões de pessoas recebem algum benefício do INSS, e uma boa parte desse dinheiro vem das contribuições de quem está trabalhando ativamente. Em um modelo em que diminuem essas contribuições, cada vez mais é preciso que os trabalhadores garantam de forma independente suas próprias aposentadorias e reservas financeiras.
GZM: Como as empresas e o Estado podem colaborar para oferecer segurança e desenvolvimento profissional nesse novo modelo de trabalho?
Cláudia Securato: Com políticas públicas e plataformas mais responsáveis. O Estado precisa atualizar a lei, e as empresas precisam reconhecer que flexibilidade não é sinônimo de desproteção. As empresas não podem basear todo seu modelo de negócio na exploração de uma categoria, sem a contrapartida de proteger esses trabalhadores, e contribuir com o Estado, que vai garantir os benefícios previdenciários de toda essa população.
Também cabe às empresas arcar com as responsabilidades sobre esses trabalhadores, e sobre a sociedade que é impactada com os seus negócios, e é a saúde desse modelo de negócio que vai garantir a sua continuidade no mercado.
